
ÉRIKA BAUER — Cineasta, professora da Faculdadade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília (UnB)
A indicação ao Oscar de Ainda estou aqui para melhor atriz, melhor filme e melhor filme estrangeiro repercutiu profundamente em nós brasileiros. E por que profundamente? Esse filme narra um tempo sombrio, tortuoso e ainda pouco discutido e está longe de ser debatido o suficiente para que não se repita, e sabemos que esse perigo sempre nos ronda.
No entanto, o que surpreende nesse filme é o cuidado e a beleza com que somos apresentados a essa história difícil a partir de uma mulher de dimensões universais, Eunice Paiva.
Eunice Paiva, a viúva de Rubens Paiva, deputado desaparecido durante a ditadura militar no Brasil, reflete a força de cada uma de nós mulheres brasileiras que caminhamos com o peso e a leveza de uma época que não poupou aqueles que aspiravam à liberdade e à justiça.
Somos introduzidos nesse filme por uma linguagem silenciosa, que nos leva a conviver com a família Paiva, e sabemos que a vida não vive sozinha, e é justamente aí que somos fisgados. Essa família é a família que nos acolhe, na nossa solidão digitalizada, e afeta nossa percepção.
Palavras aparentemente vazias na atualidade, como o lugar do belo e do sublime, crescem nesse filme. Fernanda Torres nos entrega uma Eunice com a dignidade e a força de uma leoa. Entendemos aqui a importância do cinema como produção de afeto, de uma memória coletiva que não pode ser esquecida, pois nosso patrimônio é feito também das histórias que contamos e das experiências que guardamos.
A vida da família Paiva é igual a de todas as famílias na vida cotidiana, nos alegramos, nos deleitamos com as trocas de afetos e pequenos conflitos, mas, quando as ameaças surgem e o regime militar invade a rotina dessa família, que é também a nossa, um abismo se abre e a produção de potência nos atinge em cheio. Nos indignamos, sofremos e entendemos os horrores de um regime totalitário.
Contudo, a violência, apesar de todos os abusos que essa família sofre, não é o que predomina no filme. O destaque aqui é a perseverança de Eunice, o que ela faz com tudo o que acontece e atinge sua família, como luta para manter todos unidos para seguirem a vida com dignidade. Ela não desiste de buscar respostas sobre o desaparecimento de seu marido e transforma sua tragédia pessoal em luta por direitos humanos.
A indicação ao Oscar de um filme como Ainda estou aqui mostra como o mundo precisa também dessa lufada de ar novo para a restauração de nossa fé que não está nada inabalável. Quem assistiu ao filme não sai indiferente, pois essa pequena grande família produz em nós uma fábrica de afetos e de esperanças. Uma sensação de que podemos fazer algo diferente do que fizeram de nós.
Ora, narração implica memória. Uma imagem do passado, que é a impressão deixada pelos acontecimentos, permanece fixada no espírito e precisa ser vista no presente para adquirir experiência suficiente para não aceitarmos os erros cometidos anteriormente, é a lição de Ainda estou aqui. Fernanda Torres, Walter Salles, como tantos outros, sabem disso.
Temos uma produção cinematográfica vasta, com diversidade e força vital para mostrar ao mundo que hoje se abre para o cinema brasileiro. Por trás dessas indicações ao Oscar, existe uma indústria criativa vinda de universidades e institutos com cursos de cinema, audiovisual e áreas afins abertos a públicos diversos, estimulados pela pesquisa e experimentação ampla, enriquecendo o cinema brasileiro.
O lastro que uma universidade deixa nesses estudantes, que mais adiante estarão atuando na indústria criativa e no cinema só é perceptível quando a dimensão de sua obra penetra no imaginário de alguém, propiciando novos olhares e afetos.
Hoje, felizmente, temos diferentes cinemas, diferentes formas de enxergar a realidade brasileira. E cada vez mais precisamos desses novos olhares que nascem e surgem nas universidades do Brasil afora e que formam equipes multiprofissionais construtoras do cinema brasileiro. Isso também precisa ser lembrado, pois a chamada Sétima Arte, hoje, não pode prescindir do papel das universidades na formação de equipes criativas especializadas que, invisíveis, postam-se atrás das coxias das premiações. Sim, o cinema brasileiro vive e ainda estamos aqui!