Sebastião Gilberto Mota Tavares — Procurador da Fazenda Nacional, autor e mestre em direito
Foi em Kish… Foi em Kish (Quis ou, ainda, Quixe), segundo as tabuletas cuneiformes da Antiga Suméria, que a realeza — o que poderíamos chamar de governo ou, mais amplamente, de estado — foi dada à humanidade. O sítio arqueológico de Kish está, atualmente, a cerca de 25 km a oeste da cidade iraquiana de Al-Hilla, e foi lá, de fato, que Ninurta, representando os demais deuses, teria constituído uma realeza para que servisse de intermediária entre os deuses e os homens. Aparentemente, os deuses não queriam mais governar as coisas corriqueiras das cidades e passaram essa tarefa para a humanidade através, precisamente, de um "governo" real.
O sangue da realeza era igual ao dos demais homens, mas, como os reis passaram a servir de porta-voz da humanidade, não foi demais dizer que eles também, eventualmente, poderiam ter alguma "gota" do sangue dos deuses. A partir daí, a lei da linhagem real, a lei da semente, jamais seria abandonada: o herdeiro seria aquele que descendesse do sangue real, preferindo-se o que tivesse mais "sangue puro". Posteriormente, tal lei seria levemente alterada, pois deu lugar à lei da primogenitura: o rei seria o(a) filho(a) mais velho(a), sendo desimportante o quão perto ou longe estivessem os demais filhos em relação à pureza do sangue. Nesse sentido, o(a) filho(a) mais velho(a) de um rei com a sua rainha plebeia, por exemplo, herdaria o trono, preferindo ao(à) filho(a) que esse rei, eventualmente, tivesse tido com a sua irmã…
E, assim, pelos séculos, foi ocorrendo, até que os gregos, utilizando-se do ferramental que tinham acabado de aprimorar — a filosofia —, disseram não à lei da linhagem/primogenitura e desenvolveram o conceito político de democracia. Políbio, que era historiador e, por isso, talvez tenha passado um pouco indiferente à filosofia política, comentando as formas puras e impuras de Aristóteles, dizia que, na realidade, tais formas seguiriam um ritmo "natural", começando com a monarquia e terminando com a democracia. O perigo não era a democracia, mas a "oclocracia", termo que significa, basicamente, um desgoverno provocado pelo furor e irracionalidade das multidões, que agiriam fora do direito — e, colocaríamos nós, fora da Justiça.
No final das contas, o que temos é o que, séculos depois, Maquiavel diria: "Ou temos uma monarquia ou temos uma república", que passariam a ser movimentadas pela democracia. De fato, a monarquia se tornaria uma monarquia constitucional e a república, uma república federalista. Em ambos os casos, a democracia teria chegado à sua "adolescência", na qual nutríamos expectativas louváveis e altivas de que ela ajudaria a humanidade a chegar à liberdade, igualdade, fraternidade e à felicidade.
Falar de adolescência lembra-nos a brilhantina, como em Grease. Um tempo de alegrias, de forças explodindo, de saúde, de belezas, de vigor e de buscas de aventuras, mas um tempo também de inconsequência e de ausência, senão completa, quase completa, de experiência da vida — ou seja, de saber como a vida realmente é. Já não podemos, passados cerca de 300 anos da Revolução Francesa, considerar a democracia ainda na sua fase "adolescente". Olhando para o passado, podemos verificar que, por ela, não foram eleitos apenas regimes sóbrios e comprometidos, mas também regimes tirânicos e ditatoriais — e o caso de Hitler é só um exemplo. Isso nos leva a abandonar uma visão lúdica ou adolescente da democracia, na qual tudo é puro, para considerá-la adentrando a sua fase adulta, pois, hoje, sabemos não ser ela perfeita nem nos levar à felicidade plena.
Contudo, ela é o melhor que o ser humano pôde conceber sem a ajuda não dos deuses, mas de Deus. Sem a ajuda de Deus, a democracia é o melhor que pudemos criar. Ela se opõe, diametralmente, à ideia de que existem homens "divinos", "predestinados" a governar — ou a massacrar — e nos coloca diante da evidência inexorável de que quem nos governa nada mais é do que um de nós mesmos. Sem ela, haveríamos de continuar esperando um sinal dos céus, como outrora ocorria em Kish. Por isso, devemos olhar para a democracia do jeito que a vida impõe, sem as expectativas e inconsequências dos tempos da brilhantina, mas com a esperança firme — aproveitando o ano jubilar — de que continuaremos a aprimorá-la cada vez mais.
Somos, nesse sentido, mais "polibianos" do que aristotélicos, pois não tememos a democracia, que preferimos quanto a qualquer outro regime, inclusive, àqueles que pretendam se basear em "mitologias celestiais". Aliás, no caso brasileiro, onde, em tempos recentes, passamos a duvidar da lisura dos pleitos eleitorais, o que significa duvidar da própria democracia, inclusive, em janeiro, o que pode ser atribuído, salvo melhor juízo, a uma possível mentalidade adolescente, sem muita consequência e experiência de vida, mais se torna necessário indagar: será que a democracia brasileira, ao invés de seguir firme e forte à fase adulta, está voltando mesmo aos tempos da brilhantina?
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