Cristovam Buarque — Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
No evento para lembrar o 8 de janeiro, o presidente Lula disse "nós, democratas, ainda estamos aqui", mas depois de 40 anos de democracia, eles, os golpistas, também estão aqui: tanto militares que ameaçam de fora, quanto civis que enfraquecem a democracia por dentro. Apesar de nada ter a ver com os crimes do passado, a atual geração de militares ainda tem sintonia com aqueles que sequestraram Rubens Paiva. Mais ameaçador que isso, a maioria dos parlamentares não parece ter sintonia com os líderes que lutaram contra a ditadura desejando construir um futuro democrático para o país, os parlamentares de hoje apodrecem a democracia.
Ao assistir a Fernanda Torres recebendo o prêmio de melhor atriz do ano no Golden Globe, vi Eunice e milhares de outras mulheres que passaram pelo que ela sofreu: maridos, filhos, irmãos e amigos desaparecidos. Lembrei de Dilma Rousseff e Miriam Leitão e de centenas de mulheres que sofreram elas próprias prisão e tortura. Vi milhares de homens e mulheres que sofreram durante a brutalidade ditatorial. Lembrei também dos milhões que não perderam a vida, nem foram presos, mas atravessaram 21 anos da história sem participação democrática, sem ver o país caminhar na direção do desenvolvimento rico, justo, sustentável, distribuído, livre. Mas também lembrei que já temos duas vezes mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura e ainda não enfrentamos as questões fundamentais para a construção do Brasil que queremos e nosso potencial permite.
Não enfrentamos a questão militar: nossos soldados ainda aprendem que nada daquilo ocorreu, ou o que ocorreu teria sido necessário para salvar o país e que é sua obrigação patriótica, se necessário, recusar resultados das urnas de eleitores equivocados ao escolherem líderes políticos incompatíveis ou corruptos. Foi esse aprendizado que fez com que, por pouco, não tivéssemos tido em 2023 outro golpe, repetindo 1964. Mas a questão militar não é a única nem a mais forte ameaça à democracia: nossos políticos civis e partidos não estão sendo instrumento de consolidação da democracia.
Imaginei o que Rubens Paiva e todos os outros milhares de lutadores que deram a vida pensariam se assistissem como funciona hoje o democrático Congresso Nacional, sem tutela militar, mas usando dezenas de bilhões de reais do dinheiro público para atender a volúpia por voto ou mesmo por aumento da fortuna pessoal. O que pensariam ao ter dado a vida por uma democracia que, no lugar de eliminar, ampliou privilégios, mordomias, vantagens; aumentou a extensão, o tamanho e a tolerância com a corrupção, ao ponto de a honestidade passar a ser motivo de galhofa.
Foi importante acabar com a censura que impedia escrever e publicar livremente, mas, depois de quase meio século, a democracia não eliminou a mais absoluta forma de censura que pesa sobre os 10 milhões de brasileiros adultos analfabetos, incapazes até de reconhecer a própria bandeira; aumentamos o número de universitários, mas pouco fizemos para universalizar a educação de base, não construímos um sistema nacional de educação de base com a qualidade e equidade necessárias ao progresso econômico e à justiça social. Foi fundamental abrir as cadeias, mas, para justificar a democracia, é preciso também derrubar os muros dos condomínios. A partir de 1990, reduzimos a penúria com transferências de renda mínima e com o SUS, mas até hoje não definimos uma estratégia para quebrar a obscena concentração de renda e abolir a vergonha do quadro de pobreza. Em 1994, conseguimos construir uma moeda estável, mas até hoje não conseguimos equilibrar nossas contas públicas devido ao corporativismo, ao imediatismo, à demagogia, à irresponsabilidade e à falta de espírito patriótico.
Fernanda Torres e Walter Salles nos despertam para o que sofremos simbolizado no Rubens, o quanto lutamos simbolizado na Eunice e o quanto ainda estamos devendo a eles e a todos os outros que lutaram pela democracia. Eles nos fazem gritar que "ainda estamos aqui", mas não estamos dizendo "para que estamos aqui": porque, para consolidar a democracia política, é preciso consolidar a democracia social. Fernanda nos deslumbra e orgulha, mas também nos alerta e provoca. O presidente Lula deveria convidar os comandantes e cadetes das Forças Armadas para assistirem ao filme Ainda estou aqui no cinema do Palácio do Planalto para superarmos os traumas do passado, mas também convidar aos parlamentares para assistirem a filmes que mostram o Brasil que estamos construindo: sugiro Grande Sertão, de Guel Arraes.
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