José Eduardo Cardozo*
É grande a desinformação acerca da ação proposta, na Inglaterra, sobre o desastre de Mariana. Até pessoas respeitáveis e sérias, como o embaixador Rubens Barbosa, sucumbiram às fake news e às análises distorcidas. De fato, em recente artigo (Julgamento em Londres do desastre ecológico) publicado no Correio, o presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior acabou tropeçando em algumas questões.
Afirmou, neste artigo, que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que "ações jurídicas no exterior contra o governo são ilegais" e que "contratos celebrados por municípios com escritórios estrangeiros" são igualmente ilegais. Isso não aconteceu. Motivado pela proposta de receber da BHP R$ 6 milhões, o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) propôs ação, no STF, questionando a legalidade da contratação, por municípios, de um escritório britânico (Pogust Goodhead) para, em conjunto com centenas de milhares de vítimas, pleitearem na Justiça inglesa o ressarcimento dos danos que aquela empresa anglo-australiana lhes causou. Essa ação ainda não foi julgada pelo STF. Apenas seu relator, ministro Flávio Dino, em decisão monocrática em que deixou claro que não estava examinando o mérito da discussão, decidiu que, até seu julgamento final, os municípios não podem pagar honorários ao escritório que contrataram. Nada, portanto, foi decidido sobre a "ilegalidade" de ações judiciais propostas no exterior por brasileiros ou sobre serem "ilegais" as contratações do escritório inglês por municípios. Note-se, ainda, que a ação inglesa não foi proposta contra "o governo" ou "governos", mas por pessoas físicas e municípios contra as "mineradoras".
O articulista também diz que a embaixada brasileira em Londres, corrigindo uma omissão, se manifestou contra a ação inglesa, defendendo que "não pode haver um julgamento duplo de um mesmo caso". Novo equívoco. O objeto da ação inglesa não coincide com o das ações propostas no Brasil. Naquela se discute apenas o ressarcimento das vítimas, enquanto nestas a discussão sobre a responsabilização é mais ampla. Mais: a embaixada brasileira não se manifestou sobre a ação inglesa. Apenas encaminhou para órgãos ingleses, a pedido do STF, o acordo firmado no Brasil.
Por fim, no mesmo artigo se afirma que "a ação na Corte de Londres ignora e desqualifica o sistema de justiça brasileiro, arranhando a soberania nacional", podendo produzir precedente gerador de insegurança que impactará investimentos. Não há aqui um equívoco fático, mas um viés jurídico-ideológico de abordagem.
É ideológico sustentar-se, paradoxalmente, que uma mineradora que extrai do nosso solo lucros que remete para o exterior não viola a nossa soberania, mas que essa violação ocorreria se brasileiros a acionarem nos seus países-sede para que, com o dinheiro que aqui captaram, pague os danos que lhes causaram. Que conceito de soberania é esse que protege estrangeiros de ações judiciais propostas por brasileiros? Soberania é a qualidade do poder político estatal que afirma que nenhum poder está acima dele. A Justiça brasileira pode soberanamente fixar uma indenização a ser paga pelas mineradoras no caso Mariana? Pode. A Justiça da Inglaterra pode soberanamente fixar uma indenização para que uma mineradora inglesa pague indenização no caso de Mariana? Pode. No mundo globalizado, as soberanias devem ser harmonizadas, para que jamais sejam utilizadas em desfavor do meio ambiente e a favor de violações de direitos humanos. E se ocorrer uma zona de intersecção indenizatória nas decisões judiciais dos dois países? Nesse caso, ao serem liquidados e apurados os débitos individualizados, se fará a compensação. Onde está, então, o problema?
O problema está em quem acredita que empresas estrangeiras podem causar danos ambientais e violar direitos humanos em países do Sul Global, mas não podem ser acionadas nos seus países de origem caso pretendam as vítimas ampliar a possibilidade de receber uma indenização justa. Aliás, se mais recentemente correram as mineradoras para pactuar um acordo no Brasil foi por medo da ação inglesa. Há, porém, a invocação de um retrógrado espírito corporativo judicial nacionalista para defender os interesses dos que jamais destruiriam o rio Tâmisa, mas mataram o Rio Doce. Há também os que invocam a segurança jurídica para propor fronteiras nas incômodas discussões sobre ressarcimento de danos ambientais e violações de direitos humanos.
A justiça, como a medicina, não pode ter fronteiras. Nenhum espírito corporativo judicial nacionalista, viés jurídico-ideológico ou fake news matarão a força dessa ideia.
*Advogado e professor de direito. Ex-ministro de Estado da Justiça e ex-advogado geral da União
Saiba Mais