Leandro Grass*
"Na arte, toleraremos apenas o que podemos ver e sentir como uma expressão do nosso próprio povo e de nossa época." Essa frase foi proferida por Adolf Hitler durante a Convenção do Partido Nazista de 1937. Além da barbárie do Holocausto, o Terceiro Reich se notabilizou pelos crimes contra o patrimônio cultural. Foram inúmeros monumentos bombardeados durante a Segunda Guerra, queima de livros e, principalmente, a ação organizada de roubos e destruição de bens culturais, conhecida como pilhagem nazista. Seja para enriquecimento pessoal, financiamento do regime ou para simbolizar o domínio sobre outras culturas, os nazistas se orgulhavam da vandalização de obras, especialmente as modernas, às quais denominavam "arte degenerada".
Há exatos dois anos, a cidade referência da arquitetura modernista e construída para ser o símbolo da democracia brasileira foi palco de uma ação terrorista semelhante ao modo nazista de tratar o patrimônio cultural. Gestada por dois meses a três quilômetros do Palácio do Buriti e com a omissão de quem deveria proteger Brasília, a tentativa de golpe fraturou nosso patrimônio e gerou indignação em todos nós que amamos essa cidade. Era como se estivessem entrando em nossa casa, roubando e destruindo o que é nosso com doses de ódio e crueldade. Cenas de terror.
Um dia antes, eu havia recebido a ligação da ministra Margareth Menezes e o convite para assumir a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Após 15 anos de docência e quatro na Câmara Legislativa como deputado distrital, depois de ter sido candidato a governador do DF e ficado em segundo lugar, aceitei a responsabilidade de seguir contribuindo com a minha cidade e o meu país. O que eu jamais imaginei é que a primeira missão fosse dar uma resposta à "pilhagem" extremista.
No dia seguinte, junto aos servidores do Iphan e das instituições dos Três Poderes, iniciamos a recuperação. Em pouco tempo, ficou demonstrada a competência dos profissionais que se dedicam ao patrimônio cultural e nossa soberania nesse tema tão estratégico para o Brasil e nossa democracia. Poucas semanas depois do atentado, o Judiciário e o Legislativo iniciavam seus trabalhos, e o Palácio do Planalto já realizava solenidades abertas à população.
Hoje, dois anos após a maior tragédia da história de Brasília desde a ditadura militar e na semana em que Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro por sua atuação em Ainda estou aqui, finalizamos a última fase da recuperação dos danos provocados pelos golpistas da ultradireita brasileira. Em uma parceria do Iphan com a Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e a Presidência da República, foram restauradas 20 obras do acervo do Palácio do Planalto, incluindo sete daquelas danificadas pelos golpistas. Entre elas, As Mulatas, de Di Cavalcanti. É a consolidação de um trabalho de 12 meses, realizado por conservadoras-restauradoras, professoras e estudantes que atuaram no Laboratório de Conservação (Lacorp), instalado no Palácio da Alvorada com o apoio do Iphan e da Presidência da República, por meio da Diretoria Curatorial dos Palácios Presidenciais e da Coordenação-Geral de Administração das Residências Oficiais.
Mas não bastava restaurar as obras. Precisávamos trabalhar para evitar que a barbárie se repetisse e plantar sementes de respeito ao país. Por isso, enquanto as peças eram tratadas, crianças de escolas públicas de Ceilândia, Planaltina e do Plano Piloto participaram de um belíssimo projeto de educação patrimonial em que tiveram a oportunidade de entender o que ocorreu em 8 de janeiro, conhecer as obras e seus autores e produzir réplicas em sala de aula. No mesmo período, inauguramos a exposição Democracia restaurada, na sede do Iphan, com fotografias e textos sobre o restauro das obras, a qual recebeu centenas de visitantes. Por fim, hoje será lançado o livro Restauração: democracia, preservação e memória, que eterniza e conta detalhes desse belíssimo projeto.
Devolver ao povo brasileiro o seu patrimônio cultural vandalizado e devidamente recuperado representa mais do que uma tarefa institucional. É algo que nos enche de emoção e gera esperança em nossos corações. Trata-se de semear o futuro e inspirar as gerações que estão por vir com um testemunho de verdadeiro patriotismo. Com isso, demos um contragolpe no crime, no desprezo pela cultura e em quem flerta com a violência. Isso tudo com requintes de afeto pela democracia, pelo patrimônio cultural e pela nossa capital. Com felicidade, hoje celebramos mais uma derrota do extremismo degenerado. Vitória do povo brasileiro.
*Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sociólogo, professor, mestre e gestor cultural
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