OPINIÃO

O Globo de Ouro e a democracia

Vitória de Fernanda Torres na premiação do Globo de Ouro vai além do orgulho ao bom trabalho cinematográfico brasileiro, trata-se de uma conquista da democracia.

Fernanda Torres levanta a estatueta em uma importante simbologia para o Brasil -  (crédito: Reprodução Instagram )
Fernanda Torres levanta a estatueta em uma importante simbologia para o Brasil - (crédito: Reprodução Instagram )

A vitória de Fernanda Torres, no Globo de Ouro deste domingo (5/1), como melhor atriz de drama encheu a nação brasileira de orgulho. Fernanda representou todo um país no topo da sétima arte ocidental ao desbancar as atrizes "classe A" de Hollywood. Os ganhos, porém, não param por aí. É imprescindível lembrar que a vitória de Fernanda também é uma vitória da democracia brasileira perante as tragédias da ditadura que o país viveu.

Para quem não sabe, no filme Ainda estou aqui, Fernanda interpreta Eunice Paiva, a esposa de Rubens Paiva, um desaparecido político dos anos de chumbo no Brasil. Advogada e ativista, Eunice lutou a vida toda pelo direito de encontrar ou, pelo menos, enterrar o marido. 

A história de Eunice, interpretada por Fernanda, não é a única no país. Centenas de brasileiros — em extensão, os seus familiares — sofreram perdas irreparáveis durante a ditadura militar. Segundo dados levantados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), com relatórios publicados no fim de 2014, 210 brasileiros que foram presos seguem desaparecidos até hoje.

De acordo com o livro Direito à memória e à verdade, publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, 475 militantes morreram e foram identificados. A lista de mortos é bem maior, dada a subnotificação que fazia parte dos óbitos à época. No meio rural, 1.654 camponeses foram mortos ou desaparecidos, até a promulgação da Constituição de 1988, segundo o pesquisador da Universidade de Brasília e ex-preso político Gilney Viana. Segundo o relatório final da Comissão da Verdade 8.350 indígenas foram vítimas do regime de exceção.

O terror dos desaparecimentos durante a ditadura, relatados por Ainda estou aqui, tem ainda outra importante simbologia: Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro três dias antes do aniversário de dois anos da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.

Na ocasião, golpistas de diversos estados atacaram monumentos públicos e a sede de prédios aos arredores da Praça dos Três Poderes em um domingo que não deve ser esquecido pelos brasileiros. A resposta da Justiça aos envolvidos nos ataques — inclusive militares — segue no Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte, até agora, condenou 310 pessoas acusadas de envolvimento nos atos. Desses, 229 foram apontados como executores e 81 como incitadores.

Fica claro que pensar a democracia no Brasil é atestar sua fragilidade. De tempos em tempos ameaçada. Para o leitor mais atento, talvez surja a reflexão: qual o caminho para defender a democracia no país e no mundo?

A resposta está em Fernanda Torres e em Ainda estou aqui. O papel da cultura e da memória (no ato de relembrar) é fundamental para o Brasil. É a chave para que os terrores de viver a morte da democracia não se repitam. Produções culturais que exploram o período sem medo e com esmero fazem um trabalho fundamental pela defesa da democracia. É impossível ficar impassível, ou não se sentir acuado, com as lágrimas de Fernanda Torres revivendo a dor de Eunice.

Assistir a atriz brasileira levantar a estatueta do Globo de Ouro trouxe muita alegria e orgulho aos brasileiros. Em paralelo, a conquista de Fernanda Torres vai adiante. Trata-se de uma conquista da democracia.

 

Ronayre Nunes
postado em 07/01/2025 06:00
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