Opinião

O que é capitalismo racial?

Começa a ganhar projeção no debate público brasileiro o termo "capitalismo racial", que tem sido usado em diversos contextos, com diferentes sentidos. Mas, afinal, o que ele significa?

Capitalismo racial é uma expressão que se incorpora cada vez mais ao vocabulário (analítico e político) e, com ela, somos provocados a se debruçar sobre alguns dos desafios pungentes do tempo presente -  (crédito: Caio Gomez)
Capitalismo racial é uma expressão que se incorpora cada vez mais ao vocabulário (analítico e político) e, com ela, somos provocados a se debruçar sobre alguns dos desafios pungentes do tempo presente - (crédito: Caio Gomez)

PETRÔNIO DOMINGUES — Doutor em história (USP), professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS)

 

A expressão "capitalismo racial" surgiu na África do Sul, no contexto do regime do apartheid, durante a década de 1970. Seus ideólogos — os intelectuais marxistas Martin Legassick, David Hemson, Neville Alexander e Harold Wolpe — argumentavam que, naquele país, capital e raça estavam entrelaçados. A África do Sul seria uma sociedade capitalista e racista, baseada na segregação, espoliação e humilhação de pessoas negras.

Enquanto os intelectuais liberais argumentavam que o apartheid era uma excrescência, um ponto fora da curva da virtuosa economia de mercado, os marxistas enfatizavam que o racismo era inerente ao sistema capitalista, razão pela qual ele sobreviveria ao fim da segregação, produzindo mais desigualdades e injustiças de raça e classe na África do Sul. Incrível como essas previsões, lidas 30 anos depois do término daquele regime de segregação racial, revelaram-se certeiras.

É essa engrenagem nefasta que Martin Legassick, David Hemson, Neville Alexander e Harold Wolpe batizaram de capitalismo racial. Com eles, esse conceito foi colocado em circulação no mundo Atlântico, sendo apropriado pioneiramente nos Estados Unidos por Cedric Robinson, com a publicação do livro Black Marxism, de 1983. Robinson — um politólogo marxista — preconizava que a sociedade europeia era racista antes mesmo do capitalismo.

Esse sistema não só teria sido gestado no bojo do racismo, como o potencializou a partir do século 16, quando o capitalismo precisou instrumentalizar as hierarquias raciais para se reproduzir e se expandir por meio da escravidão, da violência, da expropriação, do imperialismo e do genocídio. Assim, sem o racismo preexistente da Europa, não haveria capitalismo.

O livro de Robinson não causou, inicialmente, grande impacto no mainstream acadêmico dos Estados Unidos. Porém, mais recentemente, com a emergência de movimentos sociais, como o Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), e a crise econômica que assola aquela nação, o conceito de capitalismo racial ganhou destaque, sendo visto como importante ferramenta analítica para entender as contradições engendradas pela marcha do capitalismo contemporâneo. Todavia, o conceito também assumiu contornos políticos, os quais têm orientado as lutas sociais e o protesto do movimento negro contra a ordem vigente, fundada na opressão racial e na exploração do capital.

O conceito de Robinson tornou-se, assim, um mote para galvanizar a resistência antirracista. No entanto, no meio acadêmico, não é consensual. A principal crítica é de que Robinson incorre em anacronismo: sua noção de raça é trans-histórica. O racismo não surgiu antes do capitalismo. Pelo contrário, foi apenas com o advento da escravidão africana, na modernidade, que ocorreu a cristalização da raça.

Para Robinson, o capitalismo racial é o único tipo que existiu. Esse pressuposto é verdadeiro. Historicamente, nunca houve capitalismo sem racismo. Por seu turno, raça não é o único marcador a estruturar o sistema capitalista. Como várias pesquisas têm assinalado, o capital opera com mais de uma clivagem: ao mesmo tempo que se pauta pela lógica da competitividade do mercado (ente abstrato e cego quanto à cor), ele otimiza suas taxas de lucro discriminando e hierarquizando grupos humanos. A raça é um dos atributos da distribuição desigual da mais valia, porém, não é o único. Gênero, sexualidade, idade, ecologia, por exemplo, são outros dispositivos que fazem parte dessa equação.

Para quem acredita que as mulheres, a comunidade LGBTQIA , as crianças e o meio ambiente também são submetidos ao esbulho do capital, o termo "capitalismo racial" pode parecer insuficiente, vez que o sentido desse sistema de exploração do trabalho é, a um só tempo, classista, racial, androcêntrico, heteronormativo, adultocêntrico e ecodestrutivo. Dessa perspectiva, o pressuposto de Robinson precisa ser problematizado: postular que nunca existiu um capitalismo não racial é diferente de afirmar que o capitalismo racial foi o único que existiu.

Independentemente do sentido semântico, uma coisa é certa: capitalismo racial é uma expressão que se incorpora cada vez mais ao vocabulário (analítico e político) e, com ela, somos provocados a se debruçar sobre alguns dos desafios pungentes do tempo presente. Parafraseando Du Bois, o problema do século 21 é, ao que parece, o problema racial.

 


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postado em 04/01/2025 06:00
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