Henrique Vieira — Deputado Federal (PSOL/RJ)
O medo da violência e o uso das emoções humanas relacionadas à segurança e proteção das famílias fazem com que grande parte da população defenda políticas penais cada vez mais severas. Novos crimes, aumento de penas, liberação de armas, internação perpétua de pessoas com transtornos mentais, criação de cadastros públicos de criminosos...Tudo isso fez parte do "pacote da segurança pública" aprovado, neste mês, na Câmara dos Deputados.
Uma democracia autoritária se instaurou no parlamento. Tanto no método quanto no conteúdo, prevalece o autoritarismo em detrimento do debate constitucionalmente adequado e da garantia de direitos não apenas das pessoas acusadas de crimes, mas de todos nós. A liberação de mais armas já se provou inadequada por causar o aumento de mortes evitáveis. Estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseado no aumento de armas no governo Bolsonaro, indica que 6.379 pessoas estariam vivas sem as liberações.
A internação por um tempo mínimo de três anos, sem definição de tempo máximo, de pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes afeta muitas famílias brasileiras. Pelo projeto aprovado, mesmo crimes sem violência podem levar à internação. O projeto deslegitima a política antimanicomial do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabelece o tratamento ambulatorial como regra e a internação como exceção.
Um projeto para enfrentar organizações transnacionais criou novos crimes e penas, estabeleceu exceções penais, reorientou a ação das polícias e criou a figura jurídica da associação interfederativa. Tudo sem passar por uma única comissão. Embora a criação de um sistema para lidar com crimes transnacionais, como tráfico de pessoas, órgãos e armas, seja necessária, o projeto foi aprovado sem debate público, sem ouvir especialistas, sem consulta à Polícia Federal e sem acordo com o Ministério da Justiça.
Isso reflete a forma pouco democrática da tramitação na Câmara dos Deputados. O devido processo legislativo exige que os projetos passem pelas comissões do parlamento, garantindo sua elaboração com base em evidências e no debate social, o que não ocorreu no pacote.
Nosso trabalho foi incessante para evitar a liberação de armas para pessoas com inquéritos e condenações por crimes violentos, além de combater a anistia perpétua para quem tem armas ilegais. Atuamos também para que os crimes criados para atingir corporações criminosas internacionais não afetem indígenas e outras populações transfronteiriças.
Asseguramos que nos cadastros de organizações criminosas só constem membros com condenação transitada em julgado, evitando a criminalização por motivos racistas ou discriminatórios. Definimos que o crime de colocar barricadas deve atingir quem altera o local de moradia para criar obstáculos, mas exclui bloqueios temporários em protestos e manifestações. Impedimos que fosse aprovado o mero reconhecimento fotográfico, garantindo que, no flagrante provado, se exija foto e filmagem ou outros meios comprovados de autoria.
Todo esse trabalho exigiu muita dedicação em dois dias de intensas votações. O atropelo de como tudo foi pautado impediu um processo mais qualificado e democrático em nossa atuação. Mesmo para mandatos comprometidos com o diálogo, esse foi praticamente impossível, visto que as votações eram convocadas em sequência e o tempo de negociação extremamente limitado.
A ideia de que, para conter a violência, são necessárias mais violência, mais armas, mais penas, já sobreviveu tempo demais, e nada mudou. Temos alternativas. Cito algumas: controle do acesso a armas de fogo (elas não são itens de consumo); uso de câmeras corporais nas polícias para sua profissionalização; fortalecimento de canais de denúncia e apoio às vítimas; cumprimento da Política Antimanicomial do CNJ; investigação e punição de crimes violentos (60% dos homicídios não são resolvidos enquanto as cadeias estão superlotadas por crimes não violentos); e fortalecimento das perícias, preservando a cena do crime e garantindo a cadeia de custódia.
Propostas temos. Dados também. Mas é preciso um espaço democrático para o debate e o convencimento da sociedade de que enfrentar o crime exige o respeito à Constituição e uma atuação baseada em evidências. Ninguém quer ser vítima de crime ou ver familiares em perigo e, para isso, é preciso abandonar as soluções fáceis oferecidas pela extrema-direita, que não tem protegido ninguém, e encarar o desafio de resolver nossos conflitos estruturais (racismo e misoginia), além de adotar uma Política Nacional de Segurança Pública que garanta os direitos de todos e todas.