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Síria: o desenlace de uma guerra adormecida

Estamos presenciando um desenlace conjuntural, mais do que um desfecho. A geopolítica da região está se reacomodando num cenário global de profundas mudanças

Gloria Maria Vargas — Professora-associada do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB)

 

Em 2011, se deflagrou a guerra civil da Síria, muito ativa até 2018, mas dormente desde 2020. As forças presentes continuavam em seus domínios, sem que nenhuma delas pudesse declarar vitória sobre as outras. O regime de Bashar al-Assad havia recuperado a rede urbana mais importante do país, que inclui a capital, Damasco, Aleppo, Hama e Homs. Essa situação mudou drasticamente em 29 de novembro, quando forças opostas ao regime tomaram Aleppo, a segunda cidade mais importante do país, após ter dominado Hawar, Andzara e A'zaz. A extensão do domínio territorial vinha se deslocando em direção norte-sul para as províncias de Idlib e Hama até Damasco e, no último sábado, o regime de Assad colapsou. Ele abandonou o país.

A oposição ao regime de Assad, desde a guerra civil, esteve composta por facções diferentes que competiam entre si. A facção protagonista dos ataques recentes é o grupo HTS — Organização pela Libertação do Levante ou Comité de Libertação do Levante, conhecido por Tahrir al-Sham. O HTS reproduz uma ideologia salafista-jihadista, que se opõe ao Ocidente e procura estabelecer um regime sunita sob a lei da Sharia.

Também se opunham ao regime as Forças Democráticas Sírias, ou FDS, compostas por uma coalizão curda, que busca autonomia na região da fronteira nordeste do país, e o Exército Nacional Sírio (ENS), que também trava uma batalha contra o FDS. A Turquia, como poder regional importante, apoiava o ENS, pois tinha interesse em prevenir uma região autônoma curda na sua fronteira oriental. 

Por que esse conflito, após vários anos dormente, desperta e se define agora? Como se relaciona esse desenlace com outros eventos que estão acontecendo no mundo?

A Síria é a destilação mais evidente de um fato que se estende pelo Oriente Médio: o sistema de estados, que se baseia na ordem westfaliana europeia, nunca se assentou verdadeiramente. Essa ordem desenhou linhas divisórias que não condiziam com a realidade no território, organicamente dividido em clivagens religiosas que formam alianças vastas ao longo da região. De um lado, estão os xiitas liderados pelo Irã, que incluem uma variante, a alauita, à qual pertence a família Assad, o Hezbollah do Líbano e os houthis de Iêmen. De outro lado, os sunitas radicais, salafitas, restauracionistas, como a Irmandade Muçulmana, o Hamas e a Al Qaeda.

 Os curdos, assentados na fronteira norte da Síria, são outro grupo importante nessa conjuntura e um dos mais afetados pelas linhas arbitrárias europeias, pois foram fragmentados entre o Irã, o Iraque, a Síria e a Turquia. Na Síria, o grupo alauita esteve no controle do país desde 1971 e se manteve no poder por meio de uma ditadura ferrenha, cuja existência foi desafiada com a eclosão da guerra civil. Esses são os eixos que atravessam todo o Oriente Médio e  não se expressam na ordem dos estados nacionais imposta.

Em 2017, durante a guerra civil, organizou-se o chamado processo Astana, que reunia os chanceleres de Rússia, Irã e Turquia, cujo objetivo era chancelar um acordo de paz. Os três países tinham interesse em normalizar esta situação e manter Assad no poder. Rússia, para segurar a base naval da cidade síria de Tartus, garantindo a sua presença no Mediterrâneo. A Turquia, para assegurar que os curdos da Síria, que haviam conseguido o controle territorial na fronteira norte, não contagiassem os curdos da Turquia na busca por autonomia. O Irã, para manter a presença do Hezbollah em território sírio e um corredor por onde fazer chegar armas e apoio logístico para o grupo no Líbano e para o Hamas em Gaza. 

Dessa maneira, os três países se converteram na sustentação do regime. A Rússia passou a controlar o noroeste do país, região adjacente à sua instalação naval; os turcos, o norte em Idlib, onde continuam confrontando os curdos; e o Irã consolidou uma via direta entre Teerã e a Guarda Revolucionária Iraniana em território sírio, além do controle das ações do Hezbollah.

Frente a essa situação, quais eram as opções de Assad? Podia defender Damasco com seu Exército, mas não teve sucesso. Os russos não conseguiram deter o rápido deslocamento dos opositores para o sul, dada sua frágil situação pela presença na guerra da Ucrânia e saíram perdedores no novo status quo. Assad podia continuar dependendo da ajuda iraniana, mas, após os ataques israelenses e a decapitação do Hezbollah no Líbano, o Irã se mostrou incapaz de deter o avanço dos rebeldes. Sai também perdedor na nova situação. 

Podia pedir ajuda a Israel, e parece que assim o fez. Mas o principal interesse de Israel é abater a hegemonia do Irã. A perda de domínio territorial iraniano na Síria é lucro para os israelenses. Por último, podia pedir ajuda à Turquia, quem mais ganha com a nova situação, pois não apenas sai vitoriosa frente à luta com os curdos, senão que cresce como potência no Oriente Médio. Não por coincidência, a sua foi uma das primeiras bandeiras a ser estendida na tomada de Aleppo.

Estamos presenciando um desenlace conjuntural, mais do que um desfecho. A geopolítica da região está se reacomodando num cenário global de profundas mudanças. 

 

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