Opinião

Trégua de Natal

Quando saiu de casa para voar de São Paulo para Belo Horizonte, a "moça da janela" jamais imaginaria que se tornaria um bastião da paz por se recusar a ceder aos apelos raivosos

Em dezembro de 1914, as armas foram substituídas por pinheiros nas trincheiras alemãs. Sem que ninguém lhes desse autorização, durante seis dias, os soldados instituíram uma trégua e celebraram a data com as forças "inimigas", especialmente a britânica. Jovens, com saudades das famílias e enterrados em um conflito que provavelmente não fazia sentido algum para eles, os combatentes da Primeira Guerra Mundial organizaram torneios de futebol, cantaram hinos religiosos e até trocaram presentes. O episódio, conhecido como Trégua de Natal, jamais voltou a acontecer. 

Cento e dez anos depois, nós, brasileiros, vivenciamos nossa pequena trégua natalina. Em uma época marcada por extremismos políticos, com direito a homem-bomba, tentativa de golpe militar, xingamentos mútuos e rasgos no tecido social por desacordos ideológicos, finalmente nos unimos por uma causa. A da moça que se recusou a ceder lugar a uma criança durante um voo. 

Pela primeira vez em muitos anos, os usuários das redes sociais deixaram de lado esquerda e direita e marcharam em uma só direção. Eleitores de Lula e Bolsonaro; defensores e críticos das mudanças climáticas; "terraplanistas" e "terraredondistas"; cristãos e ateus; pais de crianças e pais de pets; os que dizem biscoito e os que falam bolacha. Todos, em uníssono, levantaram a voz contra a mãe que teria acusado de falta de empatia a passageira que (com toda razão, creio) não fez as vontades do menino mimado. 

Nos posts intermináveis sobre o assunto, não houve quem desviasse o tema para dizer que a mãe só podia ser bolsonarista ou lulista. Ninguém estragou o clima com um FORA BOZO ou FORA LULE. Quando saiu de casa para voar de São Paulo para Belo Horizonte, a "moça da janela" jamais imaginaria que se tornaria um bastião da paz por se recusar a ceder aos apelos raivosos. Moça da janela, você nos proporcionou uma inimaginável trégua de Natal. 

Na mesma semana da confusão, um motociclista foi arremessado de uma ponte por um policial militar de São Paulo. Treze membros da força de segurança estariam envolvidos na barbárie. O caso provocou comoção social. Até o governador Tarcísio de Freitas, um crítico da necessidade do uso de câmeras por policiais, mudou de ideia e resolveu defender as gravações — prometeu, aliás, instituir um monitoramento remoto para impedir que um agente desligue o dispositivo. 

Nas redes sociais — a nova "voz do povo" —, o assunto também rendeu uma enxurrada de críticas à desumanidade do soldado. Porém, diferentemente do episódio do avião, os usuários voltaram a escolher um lado. Os comentários condenando a brutalidade do policial certamente foram mais volumosos. Porém, não houve unanimidade. "Quem defende quando um policial é morto?", questiona um. "Botão de quem quer Lula na cadeia", diz outro. "Dólar passou de R$ 6", comenta alguém. 

Se o que nos faz sair das trincheiras é uma baixaria no avião, em vez do arremesso de um homem como se fosse um saco de lixo, alguma coisa está muito errada. Precisamos, urgentemente, de uma trégua, mas pelo motivo acertado. 

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