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Você precisa saber do movimento da neurodiversidade

O movimento de conscientização da neurodiversidade, uma ação política para garantia de direitos, começou pelo espectro autista, mas se expande naturalmente para inúmeras disfunções neurológicas em que seus portadores vivem uma marginalização de suas limitações

RICARDO AFONSO TEIXEIRA — Doutor em neurologia pela Unicamp e neurologista do Instituto do Cérebro de Brasília

O jornalista Stevens Silbermann, autor do best-seller Neurotribes, publicado em 2015 e ainda sem tradução para o português, disse: "Poucas pessoas podem dizer que cunharam um termo que tenha mudado o mundo para melhor, em uma direção mais humana e com mais compaixão. Judy Stinger pode".

Judy é uma australiana que apresentou ao mundo em 1998 o conceito de neurodiversidade em sua tese, ainda na graduação, na Universidade de Tecnologia de Sydney. O trabalho pode ser conferido no livro Neurodiversity: The birth of an idea (Neurodiversidade: O nascimento de uma ideia, em tradução livre). A obra traz uma reflexão sociológica sobre grupos com disfunções neurológicas marginalizadas, com foco especial nos portadores do transtorno do espectro autista, chamando os leitores para uma revolução da neurodiversidade assim como houve a revolução feminista. O livro também não tem tradução para a língua portuguesa.

O esforço de Judy acendeu a chama para que essa revolução acontecesse. São inúmeras entidades ao redor do mundo que carregam a bandeira da neurodiversidade lutando para que o mundo respeite as diferenças e dê condições para que os neurodiversos, aqueles que não representam a maioria, não sejam estigmatizados, e mais que tenham acesso a oportunidades de inserção na sociedade, incluindo o trabalho, uma vez que muitos são capazes de contribuir de forma sofisticada. Alguns têm talentos e capacidades que os neurotípicos, a maioria, nem sonham em ter. Só precisam encontrar o ambiente e o tipo de trabalho certos e muitas organizações têm trabalhado para que isto aconteça. No Blog de Judy você encontra: "Eu não estou aqui para tornar o capitalismo mais eficiente, mas para torná-lo mais humano".

Uma das pérolas do seu trabalho é a distinção entre o modelo médico e social de incapacidade. Uma pessoa pode ter uma deficiência, mas isso passa a ser uma incapacidade quando lhe são colocadas barreiras e práticas sociais que dificultam suas oportunidades de inserção social. É claro que toda condição de saúde é permeada pelo espectro de gravidade e há um subgrupo em cada uma dessas condições que está no extremo mais grave, no qual a deficiência dificilmente será diferente de incapacidade.

E quando falamos de neurotípicos e neurodiversos, vale contextualizar o conceito de normal. A palavra normal na saúde só passou a ser registrada na língua inglesa na metade do século 19, época em que a estatística passou a ser utilizada na saúde pública. O termo era o mais próximo do que se chamava de "ideal", característica mais própria dos deuses do que dos mortais. Os estudiosos em incapacidade argumentam que o que chamamos hoje de normal, a maioria, raramente alcança o estado ideal.

E você? Você se considera um neuroideal? Parabéns. Que dádiva genética que você herdou! Ou os parabéns podem ser também por sua disciplina com os cuidados com a saúde. Mas tenho que lhe dizer que grande parte da humanidade está longe de você ou dos deuses. Não estou sendo irônico. O Global Burden of Disease Study (GBD) é um dos maiores esforços para medir a morbimortalidade das principais doenças ao redor do mundo, financiado pela Fundação Bill & Melinda Gates e sob a chancela da Organização Mundial da Saúde (OMS). Sua última análise foi publicada no prestigiado periódico The Lancet Neurology, em 2024, e apontou que o grupo das condições neurológicas representa a maior causa de anos perdidos de vida saudável (DALYs), seguido pelo grupo de doenças cardiovasculares. Os resultados também mostraram que 43,1% das pessoas no mundo sofrem de alguma disfunção neurológica, seja por uma doença neurológica primária ou por efeito de outras condições que afetam o sistema nervoso. E esse sistema é o que faz nossa relação com o ambiente, e isso envolve a relação com os outros.

A difusão do conhecimento tem ajudado a reduzir o estigma sobre as disfunções neurológicas, mas ainda de forma muito incipiente. É a pessoa que sofre de enxaqueca e sente que as pessoas acham que ela supervaloriza sua condição ou se aproveita dela. E vê cara feia quando pede a alguém para evitar o uso de perfume, pois desencadeia suas crises. É o portador da Doença de Parkinson que, por ter uma menor expressão da mímica facial e uma monotonia na voz, é tratado de forma infantilizada. São exemplos de neurodiversos, cérebros que funcionam diferente, mas os outros não têm consciência disso. Muitos sofrem de algum grau de marginalização por falta de compreensão plena das suas diferenças pela sociedade.

O movimento de conscientização da neurodiversidade, uma ação política para garantia de direitos, começou pelo espectro autista, mas se expande naturalmente para inúmeras disfunções neurológicas em que seus portadores vivem uma marginalização de suas limitações. Esse é o desejo expresso de Judy na sua obra seminal. Hoje, são comumente incluídos sob esse guarda-chuva, além do autismo, o transtorno de deficit de atenção e hiperatividade, dislexia, transtorno bipolar, entre outros. Percebo no consultório o discurso libertador e empoderado daqueles que encontraram sua tribo e dizem sem timidez que são neurodiversos.

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