HENRIQUE ANDRADE — Fundador do Instituto Doando Vida por Rafa e Clara
O “Planeta Fome” existe. A perturbadora e desconcertante extrema pobreza orbita em torno das grandes cidades, da nossa cidade. Nem todos a enxergam. Ponto cego para muitos de nós, moradores de lares abastecidos, a escassez é atroz, destrói o futuro de crianças. Dados apontam que estamos abrandando os índices de extrema pobreza. É uma reconquista, mas ainda temos quase 10 milhões de brasileiros inseridos em um mapa indigesto: o da miséria.
No DF, comunidades muito próximas do centro de Brasília tentam sobreviver sem o básico. Na Chácara Santa Luzia, uma invasão que cresceu em volta daquele que foi o maior lixão da América Latina, há moradores que acordam incertos se terão o que comer no decorrer do dia. Cerca de 10 mil pessoas em situação de extrema vulnerabilidade habitam esse “oásis ao reverso”.
Na Santa Luzia, a fome, a violência, a falta de infraestrutura e o descaso ameaçam diariamente a vida de crianças, deixam apáticos adultos que aprenderam a tirar o sustento do antigo “lixão”, coletando o descarte da população de Brasília. Não há água potável, nem esgoto, luz ou pavimentação. Há casas sem banheiro. O abandono está por todo lado. Tudo é precário, hostil e insalubre.
Na minha infância, na década de 1960, fui apresentado a tal realidade. Constantes inundações arrasavam com a vida de quem vivia às margens dos manguezais que circundam Recife. Embora muito menino, não poder ajudar aqueles que viviam tão desumana situação me consternava. Deixei minha cidade natal aos 19 anos. Eu queria mudar o mundo. Cheguei a Brasília na expectativa de construir uma família e, quem sabe, um dia retornar ao meu Recife.
Voltaria levando comigo a vivência em uma cidade modelo, construída para todos. Expectativa e realidade nem sempre se cruzam. Mas, a vida ensina e a aprendizagem é gatilho transformador. Entendi que, se eu descruzasse os braços, encontraria caminhos para ajudar quem nada tem. E ajudando, motivaria outros a fazer o mesmo. A transformação começa em nós mesmos. Hoje, depois de 45 anos em Brasília, reconheço o que ela me proporcionou e sou muito grato à cidade que me acolheu. Aqui, aprendi a trabalhar em prol daqueles que precisam de tudo. Dedico grande parte do meu tempo e conhecimento para cuidar, entender e socorrer a Chácara Santa Luzia.
O DF é reconhecido pela excelente qualidade de vida de boa parte da população. Em alguns locais, tal condição é semelhante ao que se vive em países desenvolvidos. Contudo, um pouquinho além da linha do horizonte, muita gente luta contra a fome, em locais com baixíssimo índice de desenvolvimento humano e extrema vulnerabilidade.
Minha reaproximação com essa constrangedora realidade se deu após uma tragédia familiar. Em 2013, um acidente de carro tirou as vidas de nossa filha, Rafaela, e de nossa neta Clara. O vazio atingiu minha alma, perdi parte de mim. Minha tristeza é incurável, mas a dor infinita me direcionou para o sonho interrompido da Rafa: socorrer crianças, na primeira infância, vítimas do Planeta Fome.
Depois da partida de Rafa e Clara, fomos de coração aberto conhecer a Chácara Santa Luzia, iniciar um trabalho informal para mapear necessidades urgentes da comunidade. Passamos três anos compartilhando ideias e sonhos na comunidade, e decidimos fincar os pés na região. Em 2017, nasceu, formalmente, o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara (IDV). Fundada por amigos e familiares inconformados com a fome e a miséria, nossa OSC ampara, atualmente, 80 crianças de 2 a 5 anos.
Em um andar à parte, nas salas do instituto circulam, mensalmente, mais de 350 pessoas (adultos e adolescentes) aprendizes de oficinas de panificação, chocolate, corte e costura, letramento digital, salgados, bolos, pizza, manipulação de alimentos. A orientação e a formação fortalecem o ser humano, os vínculos com as famílias e com a comunidade. Estamos transformando vidas. É um ato coletivo, só funciona com a ajuda de muitos que abraçam o propósito do IDV conosco, graças a doações de amigos, associados e empresas privadas. É um trabalho de formiguinha, uma luta diária.
Um sonho, outrora impossível ao menino pernambucano, vem se realizando. Há 10 anos, temos colecionado algumas batalhas inglórias, mas muitas vitórias e lindas histórias de sucesso, de crianças vivendo a infância, de jovens e pais capacitados em busca de uma vida melhor. O inconformismo se transforma em uma corrente do bem quando nos conscientizamos que somos todos responsáveis por nossa comunidade, pela cidade que habitamos e por um mundo melhor. O luto e a dor de minha família agora são luta e amor. Assim começou a história da nossa OSC. Queremos ir além, queremos proporcionar mais alívio, saciar mais fomes, transformar mais destinos. Convido você a conhecer o Instituto Doando Vida por Rafa e Clara. Transformar é possível, ser parte da mudança também. As crianças vulneráveis do DF precisam de nós, de todos nós! Vamos, juntos, semear um futuro melhor para elas. Desejo a todos um Natal sem fome.