Alexandre Gaspari*
Em um país com mais de 8 mil quilômetros de litoral, a praia é um dos lugares mais democráticos do Brasil — um espaço de lazer e recreação acessível a qualquer pessoa. No entanto, mais uma vez o Congresso Nacional parece trabalhar contra a população e tenta transformar esse espaço de todos em um "cercadinho vip", com acesso apenas para quem tem (muito) dinheiro. Sem falar no estrago ambiental que isso pode causar na costa brasileira, agravando ainda mais as mudanças climáticas, que, por sua vez, já vêm causando eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos, como provam as chuvas históricas no Rio Grande do Sul, em maio, e a seca sem precedentes na Amazônia, pelo segundo ano consecutivo.
Somente o descaso com o povo, com o meio ambiente e com o clima pode explicar a atitude do presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, senador Davi Alcolumbre (União-AP), de insistir em pautar a votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03/2022, relatada pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ). E, por mais que seus defensores tentem dizer o contrário, a PEC cria uma base legal para privatizar praias.
A proposta à Constituição tira da União a propriedade sobre os chamados terrenos de marinha, uma faixa de cerca de 30 metros de terra contados a partir da linha costeira. Com isso, o ocupante de uma área em terreno de marinha, que hoje paga à União uma taxa por essa ocupação, poderá comprar essa área, impedindo o acesso de pessoas às praias. Além disso, a transferência de áreas ocupadas por estados e municípios pode ser gratuita. Ou seja, em última instância nem pagar para "privatizar" o acesso ao litoral será necessário ao adquirente de uma área.
A "pergunta de 1 milhão de dólares" nessa proposta é: a quem interessa "privatizar" a costa brasileira? Certamente não a comunidades tradicionais, aos povos indígenas e quilombolas, que já lutam há tempos contra a pressão financeira por suas terras à beira mar e que estarão ainda mais ameaçados se a PEC das Praias for adiante. Somente os muito ricos, bilionários, ficarão felizes. Os mesmos cujo consumo desenfreado aumenta drasticamente as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e, com isso, pioram as mudanças climáticas. São eles que agora querem lotear nossas praias com grandes empreendimentos vip, para alegria do setor imobiliário.
Mas não são somente populações tradicionais e nosso direito de ir e vir ao espaço de lazer mais democrático do Brasil que estão ameaçados por essa PEC escabrosa. Manguezais, vegetação de restinga, florestas nativas, tudo isso está em risco se essa medida for levada adiante. Não há Código Florestal que vá impedir que esses megaempreendedores façam o que quiserem nessas áreas se tiverem uma lei que os autorizem. Se muitas vezes já não respeitam a atual legislação, destruindo propositalmente o meio ambiente para depois assinar Termos de Ajustamento de Conduta que não resolvem o estrago, imaginem com uma carta branca que a PEC das Praias pode lhes dar se for aprovada.
A volta da proposta ao Senado, após meses "dormindo", fez também retornar a pressão nas redes sociais contra essa medida. Mas o mais irritante é constatar, mais uma vez, que deputados e senadores continuam agindo contra os interesses da população sem pestanejar. Por interesses eleitorais, seguraram por alguns meses essa e várias outras propostas absurdas, como o projeto de lei que regulamenta as eólicas offshore, uma fonte renovável de energia, que inclui benefícios para combustíveis fósseis como gás e carvão. Passadas as eleições, voltam com carga total em suas ações contra as pessoas, o clima e o meio ambiente. E no apagar das luzes do ano, quando, parecem acreditar, a vigilância sobre eles diminui.
A mobilização rápida contra a PEC das Praias mostra que ninguém está dormindo. Quanto mais deputados e senadores tentarem avançar contra os direitos das pessoas, do clima e do meio ambiente, mais barulho faremos. A cobrança é permanente. Afinal, foram eleitos democraticamente e se arrogam como os "legítimos representantes do povo". Engavetar a PEC das Praias já seria um bom sinal para mostrar que isso é mesmo verdade.
Especialista em energia do Instituto ClimaInfo*