ARTHUR AMBROGI — Mestre em direito político e econômico pela Universidade Mackenzie
Bashar al-Assad foi, notoriamente, um dos ditadores mais cruéis e opressores da história contemporânea. Sua queda, contudo, vem causando um misto de euforia e incerteza na Síria. A dinastia Assad chegou ao poder com o golpe de Estado de Hafez al-Assad, em novembro de 1970, e se manteve quando seu filho Bashar o sucedeu, no ano 2000. Há poucos dias, Bashar foi derrubado por uma fulminante marcha rebelde, que avançou sobre as principais cidades do país durante 11 dias, encontrando pouca resistência das forças do ditador. Essa marcha não foi efetiva por si só — na verdade, ela apenas atingiu resultado devido ao enfraquecimento ou à retirada dos principais aliados do regime: Rússia, Irã e Hezbollah. Dito isso, ainda em meio às comemorações pela queda do ditador, o país enfrenta um cenário em que grupos considerados terroristas por muitos países — como o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) — buscam articulação para transformar sua vitória militar em uma transição política sustentável.
Nesta terça-feira, começou a formação de uma espécie de governo de transição, comandado pelo líder do HTS, Abu Mohammed al-Julani. Trata-se de um militante sírio classificado como "terrorista global especialmente designado" pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos desde maio de 2013. Desde 2017, os EUA oferecem uma recompensa de US$ 10 milhões por informações que levassem à sua captura. A despeito disso, a transição culminou na indicação de um novo primeiro-ministro, Mohammed al-Bashir, realizada na presença do seu antecessor, Mohammed al-Jalani, que serviu ao regime deposto.
Potências estrangeiras há muito se digladiam na Síria, seja por posições militares estratégicas, como o Porto de Tartus, ocupado pela Rússia desde 1971, seja por recursos naturais e rotas comerciais. A Rússia, que garantiu asilo a Assad, está atolada demais na guerra contra a Ucrânia para conseguir garantir seus interesses na Síria. Os Estados Unidos, por sua vez, atuam diretamente com tropas e projeção de poder na região, inclusive bombardeando alvos do Estado Islâmico, além de fortalecer seus aliados, com destaque para Israel e os curdos, no nordeste sírio.
Por falar em Israel, sua participação foi providencial para a deposição de Assad e demandará um espaço considerável nesta análise. Ao combater o Hezbollah no Líbano, Israel também bombardeou todas as bases aéreas sírias que não estavam sob controle direto da Rússia. O Hezbollah era um aliado de Assad, assim como o Irã. Israel decapitou o Hezbollah ao longo do último ano, além de, alegadamente, destruir metade do seu poderio bélico. Não obstante, ao revidar os ataques iranianos, destruiu a defesa antiaérea do Irã, deixando claro que um novo bombardeio seria devastador para este. Complementarmente, ao entrar no sul da Síria após a queda de Assad, Israel busca criar uma zona tampão com seus aliados drusos e resguardar as Colinas de Golã, ocupadas desde 1967 e alegadamente anexadas em 1981.
Após a queda de Assad, Israel também aprofundou sua estratégia de desmantelar a linha de suprimentos criada pelo Irã via território sírio. Dito de outra forma: o precário cessar-fogo no Líbano aliviou uma das sete frentes travadas por Israel contra o chamado "Eixo da Resistência". Assim, os generais de Netanyahu encontraram a brecha que precisavam para expulsar o Irã da Síria, pelo menos por ora. Esse foi o fim de um plano traçado ao longo de três décadas pela Guarda Revolucionária do Irã e cuidadosamente concretizado sob o direcionamento do "comandante das sombras", o general Qassem Soleimani, morto pelos Estados Unidos no Iraque, em 2020. A estratégia iraniana incluía a formação de um arco terrestre a partir do Irã, passando pelo Iraque, Síria, Líbano e chegando a território israelense. Com a queda de Assad, o arco foi partido.
Enquanto isso, a Turquia de Erdogan aproveita a retirada iraniana e o atoleiro russo com a guerra na Ucrânia para consolidar sua presença no norte da Síria. Movimentos militares recentes sinalizam pressão sobre os curdos e apoio a comunidades filo-turcas no Líbano.
No momento, a principal questão que está em aberto é o papel a ser desempenhado pelo HTS. O maior grupo na derrubada de Assad se reinventou em 2017, mas suas raízes surgiram da Frente al-Nusra, filiada à Al-Qaeda, que combatia o regime Assad na guerra civil, iniciada na Primavera Árabe, em 2011.
Nesse ponto, vale lembrar que, em 2013, o autoproclamado Estado-Islâmico passou a atacar forças diversas na região e a promover atentados em outros continentes, culminando no controle de um território substancial em 2014, no qual foi imposta a sharia por meio de um califado. Com o jihadismo de orientação salafista e wahabita do califado, o Estado Islâmico se consolidou como uma rede terrorista transnacional. Assim, alguns interesses geopolíticos convergiram, gerando reações militares da Otan, de Israel e de diversos países árabes, além de uma ampliação do suporte estratégico ao regime Assad por parte da Rússia e do Irã. É o mesmo Estado Islâmico que agora os Estados Unidos estão bombardeando no centro do Síria.
Cabem dois pesos e duas medidas? O Estado Islâmico é considerado um grupo terrorista tanto quanto o Hayat Tahir al-Sham. Este, inclusive, tem laços com o Hamas, em Gaza. Na última segunda-feira, o Conselho de Segurança fez uma reunião fechada, solicitada pela Rússia, justamente para tratar do futuro da Síria. A reunião resultou na decisão de aguardar novos desdobramentos. Nenhum fato poderia evidenciar melhor: a Síria continua mergulhada na euforia de muitos e na incerteza de todos.