Opinião

Sem picanha e cervejinha, nem Ozempic. Mas com gordinho no Rio

O tratamento da obesidade é bem mais complexo e multifatorial, tem elevado impacto no orçamento público e pode ser equiparável aos gastos no combate a fome no país

Paciente obeso verifica redução de massa corpórea na balança -  (crédito: Dennis Sylvester Hurd/Divulgação )
Paciente obeso verifica redução de massa corpórea na balança - (crédito: Dennis Sylvester Hurd/Divulgação )

Marcelo Queiroga* 

As doenças cardiovasculares, segundo dados da World Heart Federation, são responsáveis, anualmente, por mais de 20 milhões de óbitos no mundo. No Brasil, são cerca de 400 mil óbitos por ano. O controle de fatores de risco, como diabete melito e obesidade, é essencial para o enfrentamento eficiente desse importante problema de saúde pública. O emprego dos agonistas do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1), novos medicamentos para diabete melito e obesidade, tem sido considerado pelos especialistas uma nova fronteira da medicina. As evidências científicas dos seus benefícios são crescentes, incluindo a redução de complicações cardiovasculares.

Desde 2010, essa classe de medicamentos está disponível no Brasil, com a aprovação da liraglutida (Saxenda) para o tratamento do diabete melito tipo 2 pela Anvisa. Mas, só em 2018, com o registro da semaglutida (Ozempic), usada também para o tratamento da obesidade (off-label), foi popularizada no país. Foi aprovada, recentemente, a tirzepatida (Mounjaro), que parece ser ainda mais eficaz. 

A revista Bloomberg Businessweek, em maio de 2023, destacou em sua capa: "As drogas para obesidade podem ser o maior blockbuster da indústria farmacêutica em todos os tempos". Estima-se que as vendas aumentariam em 30 vezes caso um terço dos obesos graves usem essas medicações, com custo de US$ 27 bilhões/ano para as seguradoras do Medicare, nos EUA, equivalente a 18,5% dos gastos líquidos com medicamentos. No mundo, as vendas da indústria farmacêutica podem atingir U$ 150 bilhões/ano (R$ 870 bilhões), equivalente a mais de três vezes o orçamento do Ministério da Saúde do Brasil.

Com base em estudo apresentado recentemente durante as sessões científicas da American Heart Association e publicado simultaneamente na revista Jama Cardiology, pesquisadores do Centro Médico Beth Israel estimam que mais de 137 milhões de adultos norte-americanos se enquadram em uma das indicações dos análogos da GLP-1, sendo importante "garantir o acesso equitativo a esses medicamentos eficazes, mas de alto custo, bem como apoiar os indivíduos para que eles possam permanecer na terapia a longo prazo". Segundo os autores, isso "deve ser uma prioridade para nossos médicos e formuladores de políticas".

Em 2023, o Ministério da Saúde negou a incorporação da liraglutida 3mg para o tratamento de pacientes com obesidade grave, pré-diabetes e alto risco de doença cardiovascular. Segundo a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), os custos do medicamento suplantam o limiar de custo efetividade previsto pela área técnica, o que acarretaria um gasto incremental, ao longo de cinco anos, de R$ 12,6 bilhões para tratar um total de 2,8 milhões de pessoas, com variação de R$ 10,3 bilhões a R$ 14,5 bilhões. 

Os novos agonistas GLP-1 ainda não foram avaliados pela Conitec, mas, diante dos elevados preços de mercados, mesmo com eficácia superior, não se enquadrariam dentro dos critérios econômicos vigentes. Na perspectiva da saúde suplementar, o cenário ainda é mais intricado, já que a legislação que regula o setor exclui de cobertura os tratamentos domiciliares, exceto os antineoplásicos de uso oral. Portanto, ao contrário do que ocorre no Medicare americano, a cobertura pelas operadoras de planos de saúde dos agonistas GLP-1 no Brasil não é obrigatória. 

A indústria farmacêutica inovadora adota como estratégia mercadológica a oferta de medicamentos por preços mais elevados, mesmo que somente uma parcela menor da população tenha acesso, excluindo-se os indivíduos de baixa renda. Acordos de acesso gerenciado, nos quais a indústria aceitar compartilhar risco com os provedores de saúde em face da obtenção de benefícios clínicos, podem facilitar a incorporação dos agonistas GLP-1, a exemplo do que houve em minha gestão no Ministério da Saúde, com a incorporação do zolgensma no SUS, para o tratamento da atrofia muscular espinhal.

Os agonistas GLP-1 são mesmo o assunto do momento, para além dos famosos que fazem uso, foram tema das eleições municipais, já que o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), prometeu disponibilizar a semaglutida na rede pública municipal: "O Rio vai ser uma cidade que não vai ter mais gordinho. Todo mundo vai tomar Ozempic nas clínicas da família". No entanto, como vimos, o tratamento da obesidade é bem mais complexo e multifatorial — depende de dieta saudável e atividade física, além do controle da ansiedade —, tem elevado impacto no orçamento público, mesmo sem incluir na conta a "cervejinha com picanha" prometida pelo presidente Lula, e pode ser equiparável aos gastos no combate a fome no país, ao menos pelo que depreendemos das estimativas econômicas para incorporação dos agonistas GLP-1 no Brasil e no mundo. 

 *Especialista em cardiologia, foi ministro da Saúde

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postado em 04/12/2024 06:00
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