Gunther Rudzit*
Ian Bremmer lançou em 2012 um livro que fez uma séria provocação intelectual e política. O título é Every nation for itself, winners and losers in a G-Zero world (Cada nação por si mesma, vencedores e perdedores em um mundo G-Zero, em tradução direta). O argumento do criador da maior empresa de análise de risco, a Eurasia Group, defende fundamentalmente que estávamos vivendo em um vácuo de poder no mundo, já que nenhum país, ou grupo de países, conseguiria influenciar nas reformas da ordem internacional nem na agenda global.
Segundo Bremmer, os Estados Unidos conseguiram uma nova ordem após o fim da Segunda Guerra, já que eram a verdadeira potência hegemônica. Os grupos de países que mudaram a ordem foram os vencedores da Primeira Guerra e o G7, ao fim da Guerra Fria. Com a crise de 2008-2009, surgiu o G20, que conseguiu diminuir os impactos financeiros globais, mas, após esse início promissor, já indicava que seria muito difícil conseguir consensos para a resolução dos problemas globais. As diferenças de valores entre as democracias de mercado e a ascensão da China de capitalismo de Estado faziam com que concordâncias se tornassem cada vez mais difíceis.
Alguns mais desavisados diriam que a declaração final do G20 no Rio de Janeiro seria a prova contrária da hipótese do G-Zero, já que, nas duas últimas cúpulas, não se obteve um documento final. Mas, em uma análise um pouco mais sensata, é possível entender que houve uma conjuntura muito específica. Em grande parte, a obtenção da declaração final foi pela atuação profissional dos diplomatas brasileiros.
Durante o século 20 e até meados dos anos 2010, o Itamaraty foi percebido pelos outros governos, e até mesmo por Henry Kissinger, como um dos corpos diplomáticos mais profissionais do mundo. A capacidade de diálogo com diferentes atores, desde os lados opostos na Guerra Fria, como entre desenvolvidos e em desenvolvimento no Pós-Guerra Fria, levou o Ministério das Relações Exteriores (MRE) a ser um bom construtor de consensos.
Mas isso se deve também ao fato de que o Brasil não foi e não é uma grande potência, fazendo com que seus interesses dificilmente entrassem em choque com os das grandes potências. Portanto, isso não fez do Brasil um global player, mas, sim, um interlocutor global.
Essa capacidade também foi facilitada pela estratégia adotada — ou seja, evitar os temas que já se sabia que não se conseguiria consensos. Foi justamente o oposto disso que levou a não se ter declarações finais na Indonésia e Índia, já que estes governos tentaram tratar dos temas mais prementes, como a guerra entre Rússia e Ucrânia. Com a conjuntura da divisão política internacional, em especial dentro do G20, nos blocos Ocidente e autocráticos, o resultado somente poderia ser esse.
Com a centralidade dos esforços no tema da fome, não se poderia ter uma oposição à proposta, como tanto foi discutido nos meios de comunicação. Mas um outro fator foi importante, a volta do ex-presidente Donald Trump ao poder em janeiro de 2025.
O multilateralismo não é visto por Trump como o meio adequado para conseguir atingir os interesses americanos. Para ele, somente utilizando o peso econômico e militar dos Estados Unidos é que ele conseguiria, e buscará novamente, defender o "America first". Durante o seu primeiro mandato, Trump procurou enfraquecer o multilateralismo, saindo do Tratado Transpacífico, do Tratado de Paris, da Organização Mundial da Saúde, não indicando juízes americanos para a Organização Mundial do Comércio e fazendo discursos na Assembleia Geral das Nações Unidas criticando expressamente a ONU e defendendo o nacionalismo. Até mesmo os aliados europeus sofreram com sua ameaça de retirar os Estados Unidos da Otan, a base da política externa americana desde 1949.
Portanto, uma nova administração Trump indica que será um desafio para todos os outros governos, inimigos ou amigos. Por isso, houve um certo acordo para que a declaração final reforçasse o multilateralismo, uma ação prévia para indicar a disposição dos outros governos em não aceitar um unilateralismo. É importante entender isso até mesmo para uma das maiores reivindicações do Brasil, a reforma dos órgãos multilaterais.
O Brasil defende a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, tendo como argumento que sua composição não representa a realidade do mundo de hoje, e, por isso, está perdendo legitimidade. A defesa é do G20 como sendo um fórum mais democrático.
Mas o grupo é justamente o oposto disso, sua composição é pura política de poder. Somente as maiores economias do mundo têm voz, os convidados, como a União Africana ou outros governos, são somente isso: convidados escolhidos pelo governo anfitrião que não necessariamente participarão da próxima reunião. Por isso mesmo, consensos são raros e continuarão, ainda mais com a volta de Trump ao governo da maior potência global, reforçando a realidade de um mundo G-Zero.
*Doutor em ciência política, professor de relações internacionais da ESPM e professor convidado da Universidade da Força Aérea (Unifa)
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