Marisol Kadiegi — Jornalista, documentarista, especialista em história, cultura, identidades e fronteiras e em fotografia como suporte para a imaginação
Dos rituais presentes na sociedade angolana, o funeral é a cerimônia mais intensa e marcante em que a virtude da solidariedade mais se manifesta, tornando-se um tempo presente de reorganização social dos que ficam. Quando a morte é de uma autoridade tradicional, a solenidade toma uma dimensão extracorporal e até espiritual. Os detentores desse poder hoje são os sobas ou regedores — elos entre a comunidade e as autoridades políticas de governo. Não se entra numa localidade angolana sem que exista a autorização prévia do soba. Não se entra num rio para tomar banho sem que o soba dê licença ao visitante — ou seja, é a essa autoridade que a comunidade segue e respeita. Então, quando o funeral é de uma dessas lideranças, as exéquias chegam a demorar dias e são cercadas de mistério.
A morte nas sociedades africanas é tratada como uma viagem em que o corpo se foi, mas o espírito ou a alma permanece neste plano, sendo, muitas vezes, digno de rituais de agrados e consultas para o bom encaminhamento da comunidade terrena. "Os antepassados são considerados intermediários entre a comunidade viva e o mundo espiritual", segundo Kunonoka. Portanto, dar a conhecer sobre a cerimônia neste artigo é também um buscar de si, falar de si para si, usando uma perspectiva do conhecimento do "desde dentro", conforme pontua a antropóloga Sheila Walker. Os africanos devem falar de suas histórias para seu povo, falar de si para os seus.
África é o nosso quilombo, cujo nome original vem de Angola e que, em determinado momento da história do país, queria dizer um acampamento de guerreiros na floresta administrado por chefes, uma organização africana extremamente diversificada. Ou seja, falar de quilombo está associado ao nosso viver, pois foi nesses espaços que resistimos, nos aquilombamos e fizemos a história. Construímos arte, memória, marcamos nossa territorialidade, fizemos patrimônio material e imaterial, enraizamos nossos akokotos, celebramos nossa ancestralidade e assentamos vidas.
Pedimos licença aos ancestrais para escrever sobre um dos povos de África e render aqui num breve relato, nossa homenagem à dignidade soberana dos povos primários do planeta. Os ovimbundos, grupo étnico falante do umbundu, ocupa a região do planalto central angolano. São herdeiros do reino do Bailundo, fundado pelo rei Katiavala no século 15. Esse povo preserva e mantém sua cultura por meio da tradição oral, responsável pela transmissão da história. Continuam resistindo, ressignificando, recriando suas crenças nos seus diversos costumes, como o ritual de nascimento de gêmeos, tendo como principais elementos a dança, a música e a alimentação.
É na morte que está sua maior veneração, quando praticam o akokoto, lugar sagrado de seus antepassados. Pois, como afirma Muniz Sodré, "a Terra guarda os segredos da vida e da morte". Akokoto, termo do umbundu, pode ter o significado de crânio, mas que, em sua extensão, pode ser considerado como a evocação de uma instituição espiritual cuja essência é o local onde são guardados os crânios dos soberanos. Esses cemitérios devem ficar em locais de baixas temperaturas para favorecer a conservação das caveiras e em locais ermos para evitar a profanação ao sagrado. É a eles que a comunidade recorre em momentos de alegria, de tristeza e de qualquer infortúnio. O ritual é uma crença ritualística que se religa com seus antepassados ou mesmo com Nzambi (Deus), o ser superior em quem a comunidade deposita suas aspirações. É dentro dessa dimensão sociocultural que o povo resiste para a manutenção de suas tradições. A essência dos akokotos como grandes bibliotecas perpetua os sábios. Com os crânios enterrados, enterrada toda a enciclopédia, reforça o provérbio africano "Quando morre um griô, morre com ele toda uma biblioteca". Na África, o crânio como visto acima tem o valor do sagrado, e a perpetuação para que nossa existência possa ter força e continuar a trajetória.
Angola é um dos países mais diversos na sua riqueza cultural, terra da soberana rainha Nzinga Mbandi. Como ela — referência da história angolana —, os akokotos com seus rituais transmitidos de geração para geração são patrimônio sociocultural religioso. Registrar o ritual e poder dividir esse saber com aqueles que nos leem faz de nós portadores da cultura de um povo africano, um povo que ainda sofre as consequências de uma desvalorização, cultural, étnica e intelectual. Por isso, não teria sentido nossa existência se não buscássemos nosso levante, nossa história e ancestralidade.