Opinião

Artigo: Resistência negra - diversidade racial na TV brasileira

Faz-se mister, neste contexto de ações afirmativas, a produção de novas narrativas de uma história negra que se mostre plural, vicejante e multifacetada

Babalawô Ivanir dos Santos*

Petrônio Domingues**

Resistência negra estreou na última quinta-feira na TV Globo, uma série idealizada pelo babalawô Ivanir dos Santos e que contou com a consultoria do historiador Petrônio Domingues, autores deste artigo. Dividida em cinco episódios, tem um caráter ficcional, porém, foi concebida e roteirizada a partir do diálogo com estudos históricos.

Ao publicar Casa grande e senzala, em 1933, Gilberto Freyre escreveu: "Desde logo salientamos a doçura nas relações de senhores com escravos domésticos, talvez maior no Brasil do que em qualquer parte da América". A frase expressa, de maneira lapidar, a visão que perpassa o livro clássico sobre a escravidão brasileira: a ambígua plasticidade dessa escravidão, sobretudo se comparada com a de outros países escravocratas. A obra reforçou representações da brandura do senhor, da submissão dos escravizados, da excepcionalidade da miscigenação, influenciando uma narrativa que fundamentou a ideologia da democracia racial — segundo a qual, no Brasil, pessoas negras e brancas viviam harmoniosamente, em clima de tolerância e fraternidade racial.

No entanto, faz tempo a historiografia brasileira tem refutado o paradigma da democracia racial. A violência estrutural constituiu o vínculo básico da relação escravista. Apesar dos contatos, intercomunicações e intimidades de senhores e escravizados, prevaleceu a dominação de um grupo pelo outro. E a dominação provocou o inconformismo, a resistência ante o cativeiro. Esta se deu por ações individuais e coletivas (infanticídio, assassinatos de feitores, capoeira, candomblé, irmandades negras), com destaque para as fugas, as revoltas e a criação de quilombos em várias regiões do Brasil, com suas estratégias de luta, suas formas de organização, seus projetos de liberdade etc.

Quanto à miscigenação, existiu em todos os sistemas escravistas, e nem por isso alterou a situação do escravizado ou desestabilizou a instituição alicerçada no nefando comércio. Portanto, não desempenhou o papel de para-choque das tensões raciais, que lhe foi atribuído por Freyre. A historiografia contemporânea produziu inúmeras obras sobre o sistema escravista brasileiro, atestando a face cruel da experiência do cativeiro, o que contribuiu para esmaecer a visão de um regime em que se moviam iaiás dengosas, senhores severos, mas paternais, escravizados subservientes e fiéis.

É a luz desses avanços epistêmicos que se inscreve a série Resistência negra. Do ponto de vista da abordagem, procura apreender a trajetória das pessoas negras a partir delas próprias. Aí não há espaço para discursos de comiseração, nem de vitimização. Em vez de alienadas ou bestiais, as pessoas negras são vistas como engenhosas, versáteis e movidas por lógicas próprias: dotadas de personalidade, com noções de direitos e discernimento político. O enfoque é sobre os afrodescendentes como autodeterminados, protagonistas de sua história, de suas escolhas, conquistas e realizações.

Não se tem dúvida de que o Brasil é uma nação imaginada que se estruturou a partir do racismo, porém, ao assistir à nova série, o telespectador se surpreende, pois também constata que as pessoas negras aqui não capitularam ante os infortúnios da vida, seja no período da escravidão ou do pós-abolição. Pelo contrário, agiram e reagiram proativamente, lendo os desafios da vida com lentes sui generis e, a partir daí, procuraram tanto quanto possível inserir-se socialmente: alocar-se no sistema ocupacional, tecer mobilidade ascendente, fazer política, dialogar e se aliar com outros segmentos, estabelecer e valorizar laços familiares, investir em práticas culturais — enfim, os "pretos" e "mestiços" buscaram incorporar-se à comunidade nacional com dignidade, a partir de seu próprio modus vivendi: projetos, estratégias e visões de mundo.

Resistência negra confere centralidade à experiência do movimento negro, destacando seu papel educador na história do Brasil. Para além de afirmação identitária, resiliência e ancestralidade, o movimento negro tem construído um legado pulsante, de protagonismo, empoderamento e descolonização cultural, que acena para um novo projeto de nação. E a série representa um marco na TV brasileira. Indica que a presença negra na produção audiovisual é fundamental para diversificar e enriquecer as narrativas, promovendo uma representação mais fidedigna da sociedade. Isso contribui para corrigir desequilíbrios históricos de representatividade na TV. Faz-se mister, neste contexto de ações afirmativas, a produção de novas narrativas de uma história negra que se mostre plural, vicejante e multifacetada.

Doutor em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)*

Doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS)**

 


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