João Jorge Rodrigues*
Hoje, 20 de novembro, é o Dia da Consciência Negra, celebrado, pela primeira vez, como feriado nacional, por força da Lei 14.759/23, sancionada pelo presidente Lula, e da luta histórica do movimento negro brasileiro contra a perversidade do racismo e do escravismo. É dia de refletir sobre o amplo significado desse conceito e sobre a importância de incorporá-lo a todos os grupamentos e esferas da vida social, para que os desafios que ainda se apresentam na superação dos efeitos nefastos da escravidão sejam superados pelos avanços — inegáveis, mas insuficientes.
É preciso que essa consciência alcance todas as mentes e todos os corações negros, para que se convençam de que sua identidade não é inferior a qualquer outra; para que saibam que sua estética é bela; sua cultura, rica; sua capacidade intelectual, sem limites; sua contribuição para o desenvolvimento humano, imensurável. Essa consciência passa também pelo conhecimento da história e pelo cultivo da memória, porque é preciso lembrar, para que não se repita, a iniquidade do processo de escravização, a mentira das raças, a hierarquização dos grupamentos humanos que violenta, suprime direitos, mata.
Dito de outra forma, é necessário revisar o passado para compreender o presente e construir o futuro — e isso vale para todos, não apenas para os afrodescendentes, porque é preciso que todos compreendam a importância dos mecanismos de reparação, como as ações afirmativas, por exemplo.
Ao contrário do que o neoliberalismo faz supor, nem todos têm chances iguais na corrida para alcançar a realização profissional, porque nem todos partiram do mesmo ponto. Portanto, não dispõem das mesmas condições de acesso a direitos, à sobrevivência digna, à realização de sonhos.
Ter consciência negra é, pois, valorizar o passado de luta de nossos ancestrais, como Zumbi dos Palmares, Dandara, Acotirene e Aqualtune, mas, acima de tudo, é ter consciência de que a história preta do Brasil é a própria história do Brasil. E é essa história, presente, que nos faz questionar, de forma direta e incontornável: onde estão as mulheres e os homens pretos nos cargos mais altos deste país? Onde estão as mulheres de terreiro, as lideranças negras, o povo que resiste e persiste defendendo sua cultura?
Os espaços de poder, as esferas de decisão, ainda são limitados para nós. São portas que precisam ser abertas para dar passagem a nossa voz, a nossa visão de mundo, a nossa forma de governar, de decidir, de transformar, sem que precisemos, continuamente, nos afirmar.
Nossa luta é cultural — portanto, política. A Fundação Cultural Palmares é o coração que pulsa no ritmo das periferias, das favelas, dos quilombos e dos movimentos negros. É a força da mãe preta, da mulher que se levanta cedo, que enfrenta o transporte cheio, que trabalha, cria, ensina, cuida.
É o espírito de luta da mulher negra que, entre jornadas múltiplas, mantém viva a cultura, ao moldar histórias, bordar memórias, tecer esperanças e transformar espaços. Essas mulheres são a base invisível e incansável da nossa sociedade, e, enquanto o país não reconhecer essa força, nossa luta estará apenas começando. Pensar por esse ângulo é fazer valer a consciência negra.
Nos terreiros, a mulher negra ocupa um lugar sagrado, uma posição de liderança, sabedoria e força. É ela quem cuida, quem acolhe, quem sustenta a comunidade com firmeza e ternura. Essas mulheres guardam e transmitem conhecimentos ancestrais, mas o que vemos nos espaços de poder é uma ausência que revela a realidade de um país que ainda não reconhece o valor de suas raízes pretas.
Como presidente da Fundação Palmares, meu compromisso é com o fortalecimento e o reconhecimento da identidade, da cultura preta, em cada gesto, em cada ação. E, para nós, a cultura negra não se dissocia da política. Somos herdeiros de uma tradição que não pede licença para existir.
É uma tradição que se expressa em cada esquina, que resiste ao apagamento, que reverbera em cada tambor, que se afirma com orgulho. Nossos antepassados lutaram para que estivéssemos aqui. E estar aqui, neste lugar de fala, é honrar cada um deles, é dar continuidade a uma história de bravura.
Presidente da Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura*