Opinião

República: 135 anos ainda como um sonho a ser realizado

Avançamos mais em cidadania nos últimos 36 anos do que em todos os 135 anos de República. É possível realizar aquele sonho aspiracional do longínquo 15 de novembro de 1889

Claudia CostaPós-doutoranda e visiting scholar em direito constitucional pela Universidade Deusto (Espanha) e professora de direito constitucional na Universidade Mackenzie

O mês de novembro é um convite a refletir sobre a nossa República, cuja proclamação completa 135 anos. Comemorá-la deveria ser recordar o ideal democrático de participação popular na escolha de dirigentes e legisladores para que o sentido da igualdade e liberdade (além da fraternidade), clamado pela figura feminina mítica de Marianne, da Revolução Francesa, se faça em plenitude, para todos e todas.  

Mas é curioso lembrar que, em nome desses ideais, foi dado um golpe de Estado no Império, no fim do século 19. Pela democratização das instituições, em nome da liberdade e da igualdade de participação política, inicia-se a primeira ditadura republicana do Brasil. Nesses primeiros dias, tropicaliza-se o modelo norte-americano, criando, a partir daí, uma receita bem brasileira. Troca-se o trono pelo presidencialismo, um sistema de governo supostamente mais democrático devido à alternância no poder da chefia de governo.

É certo que a República trouxe pela mão dos marechais um novo modelo para o país. Passamos a ter um Estado laico com uma pretensa liberdade religiosa e a possibilidade de educação laica com o ensino primário gratuito, cujo conceito é herdado do Império. O voto deixa de ser censitário, reduzindo o privilégio dos detentores do poder econômico, para ser masculino, maior de 21 anos, desde que não seja analfabeto ou mendigo. 

Ora, num país de recém-libertos, um país de imigrantes que vieram substituir mão de obra escrava e, portanto, analfabetos, e sem a participação alguma das mulheres no processo decisório, a pergunta que fica é: qual democracia pretendíamos então?

 Nem é preciso lembrar que a política dos marechais cedeu à política dos governadores. Tivemos a alternância de poder de privilégios entre os partidos republicanos paulista e mineiro, falseando completamente o federalismo e a participação política nas eleições. 

Mas a chamada República Velha acabaria com um novo golpe de Estado.  Desta vez, promovido por Getúlio Vargas, e será por suas mãos que teremos a participação feminina no processo constituinte de 1933. No entanto, teríamos mais um golpe, do próprio Getúlio, que instituiu o chamado Estado Novo, uma ditadura que amordaçou as liberdades de 1937 a 1945.  

O período Republicano entre 1946 a 1964 é politica e institucionalmente agitado. Temos uma nova constituição, mas sofreríamos os reflexos da Guerra Fria, o que influenciava nosso país interna e externamente. A propaganda importada buscava plantar entre nós o perigo de o Brasil dar uma guinada à esquerda, abraçando o comunismo internacional. 

No período, abundam conspirações e temos até o extraordinário golpe da legalidade, em que o marechal Henrique Lott derruba o governo para dar posse ao presidente eleito, Juscelino Kubitschek. Trata-se de uma ação de ruptura institucional em nome da manutenção da ordem constitucional. Não é de hoje que o Brasil não é para amadores.

Finalmente, após tantas conspirações, a República é subvertida em 1964 por militares, com apoio de civis, que tomam o poder. Foram 21 anos de arbítrio, encerrados com a eleição tutelada de um civil, Tancredo Neves, que morre antes de tomar posse legando o novo governo a um ex-prócere da recém- encerrada ditadura, José Sarney. Para as novas gerações, parece conto de ficção, mas é a história do Brasil.

O divisor de águas de nossa história republicana é a Constituição Cidadã, promulgada em 1988 e que marca a reconquista da separação de Poderes com um sistema de freios e contrapesos — embora alguns queiram a supremacia do Executivo. Com ela, veio também a autonomia do Ministério Público como guardião do Estado Democrático de Direito, o indispensável Sistema Único de Saúde (SUS) e as agências reguladoras, como órgãos de Estado em favor da sociedade. A lista de conquistas é longa.

Criminalização do racismo e da homofobia; criação da Lei Maria da Penha, do Estatuto da Igualdade Racial, do Idoso, da Criança e do Adolescente, e de Portadores de Deficiência; igualdade dos filhos; fim do homem como chefe da família; cotas de acesso ao ensino superior, participação dos grupos vulneráveis em vários segmentos da sociedade e ampliação da participação partidária das mulheres.  

Em resumo, avançamos mais em cidadania nos últimos 36 anos do que em todos os 135 anos de República. Mais que uma crítica, isso mostra uma certeza: é possível realizar aquele sonho aspiracional do longínquo 15 de novembro de 1889. Basta querermos.

 


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