Opinião

O vigiar e punir do mundo das bets

A regulação do setor de apostas on-line precisa garantir que as informações sejam usadas apenas em prol da integridade do jogo, sem se prestarem a outros interesses

Felipe Crisafulli — Especialista em direito desportivo e regulamentação de jogos e apostas. Doutorando em direito pela Universidade de Coimbra. Membro da Comissão de Direito dos Jogos, Apostas e do Jogo Responsável da OAB/SP; Gustavo BigliaAdvogado especializado em M&As em bets e regulamentação de jogos e apostas. Pós-graduado em direito societário pela Fundação Getulio Vargas (FGV/SP)

 

Vigiar e punir, lê-se na capa de famosa obra literária de Michel Foucault — e no título deste artigo. Mas não, caro leitor, os conceitos ligados à vigilância — na sua forma de monitoramento, fiscalização e inspeção — e punição que permeiam este texto não tratam de direito penal. O tema, aqui, são as bets.

Nos últimos anos, o universo das apostas on-line cresceu a passos largos, atraindo milhões de usuários e muitos bilhões em receita. No Brasil, o setor se expandiu exponencialmente, ao ritmo da evolução tecnológica. Com ele, emergiram necessidades prementes de vigilância, monitoramento, fiscalização, inspeção e punições em caso de falhas no sistema.

Nesse contexto, como garantir a integridade dos jogos e evitar fraudes? Se, por um lado, a legislação impõe aos agentes operadores a obrigação de adotar mecanismos de segurança e integridade, a fim de evitar fraudes e manipulações, o poder de polícia está nas mãos do Estado. Atuar, em paralelo ou em cooperação, com as empresas que exploram essa atividade, de modo a minimizar as suspeitas de manipulação de resultados (match fixing), é uma obrigação do Poder Público.

Em simultâneo, os entes federados devem reconhecer suas incompetências e incapacidades. Nesses momentos, é medida salutar socorrer-se de parcerias com terceiros, ainda que estes sejam organismos privados. Não por outro motivo, uma das soluções encontradas pelo mercado, inclusive pelo Ministério da Fazenda, é a celebração de Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com empresas especializadas em monitoramento, prevenção de fraudes e integridade de apostas esportivas.

Como regra, a metodologia empregada envolve tecnologia de ponta, desde big data e inteligência artificial até soluções de cibersegurança e análise comportamental para identificar condutas suspeitas em tempo real, buscando preservar a transparência e a confiabilidade dos jogos. No papel, trata-se de medida eficaz; nem por isso, no entanto, inexistem desafios. 

O monitoramento em tempo real promete maior segurança, mas não é infalível. A (super)dependência de algoritmos e inteligência artificial pode ser perigosa: sistemas falham; nuances de comportamentos passam despercebidas; contextos da partida e/ou do campeonato por vezes não são considerados; pessoas isoladas e grupos organizados exploram as brechas do sistema; margem de erro. Quaisquer desses fatos, associados ou não entre si, podem atrapalhar a busca por desvios de padrões, tornar imprecisa a interpretação de atipicidades e levantar falsos sinais de alerta.

Outro ponto crítico está relacionado à transparência dos sistemas de monitoramento, sobretudo no âmbito dos ACTs. Assegurar que as empresas parceiras não utilizem as informações coletadas para fins indevidos, como manipulação de mercados ou venda de dados pessoais, há de ser prioridade número um do governo. A regulação do setor precisa garantir que as informações sejam usadas apenas em prol da integridade do jogo, sem se prestarem a outros interesses.

Há, por vezes, problemas estruturais, de padronização. Sem supervisão rígida, a implementação dessas soluções de monitoramento pode se tornar simples exercício de marketing, sem resultados concretos de redução de fraudes ou garantias de integridade no jogo, além de gerar bodes expiatórios e acarretar imensuráveis danos à carreira do atleta.

Do ponto de vista das pequenas e médias empresas, os ACTs celebrados pelo Ministério da Fazenda podem ajudar. Afinal, essas casas de apostas tendem a ter mais dificuldade de suportar esse tipo de custo, ficando mais vulneráveis a práticas fraudulentas. Nesse sentido, a participação do governo federal reduz o risco de surgimento de um ambiente desigual, em que a integridade do jogo é mais garantida em determinados locais que em outros.

Trata-se, pois, de preocupação latente. A integridade, a confiança e a imprevisibilidade são elementos intrínsecos ao esporte — e, tal qual o cristal, uma vez quebradas, nunca mais se emendam. O sucesso da parceria das empresas de monitoramento com as casas de aposta e o poder público dependerá não apenas da eficácia das ferramentas de monitoramento, mas também de transparência, regulamentação adequada e fiscalização rigorosa. Caso contrário, o risco é que essas soluções se transformem em uma fachada, em uma medida superficial para enganar a confiança do público e encobrir falhas estruturais dos envolvidos. Nessa eterna batalha de cão e gato, só o tempo dirá quem se sagrará, na maior parte das vezes, vencedor.

 

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