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E se fôssemos sem eles?

A eleição de Trump virtualmente enterra a meta de estabilizar o clima em 1,5ºC, mas as negociações internacionais são um lugar muito melhor sem os EUA atrapalhando

Claudio Angelo*

Algumas separações são livramentos. O processo é sempre doloroso, deixa marcas e prejuízo, mas o cônjuge acaba dando rumos novos e melhores à vida depois. Nesta semana, com a eleição de Donald Trump, talvez a humanidade esteja a ponto de encerrar um casamento abusivo de 34 anos com os Estados Unidos nas negociações internacionais para o combate à crise do clima. 

Não me entendam mal: o retorno do republicano ao poder representa uma catástrofe climática de difícil superação. Estamos em plena aceleração do aquecimento global, com dois anos consecutivos batendo recordes históricos de temperatura. Somadas, as metas climáticas atuais dos países levariam o mundo a um aquecimento muito maior do que o limite de 1,5ºC do Acordo de Paris. Todos os países precisam apresentar novas metas mais ambiciosas, mas, em vez disso, teremos o segundo maior poluidor global abandonando (de novo) o acordo. 

O financiamento climático, que deveria ter uma decisão crucial neste mês na COP29, no Azerbaijão, também vai para o vinagre: os EUA são o maior devedor de recursos, mas Trump cortará esses pagamentos com uma canetada. Os países em desenvolvimento não aumentarão suas metas sem dinheiro. Portanto, com Trump, o objetivo de limitar o aquecimento da Terra a 1,5ºC está enterrado.

Há um perigo ainda maior: a saída dos EUA do Acordo de Paris pode encorajar outros autocratas, como os da Argentina, Turquia, Venezuela e Rússia, a fazer o mesmo. Isso seria a implosão do regime multilateral — hoje, a única coisa a nos separar de um aquecimento de 3ºC ou mais. 

Ocorre que, mesmo ainda estando na Convenção do Clima da ONU, os Estados Unidos são de longe o país que mais fez e faz para atrapalhar o processo. Desde 1992, a história do regime multilateral tem sido a do resto do mundo lidando com chantagens, obstruções, birras e abandonos dos americanos. 

Toleramos em 1997 uma resolução aprovada por todos os senadores do Capitólio (inclusive, um certo Joseph Biden Jr.) declarando que nenhum acordo internacional de controle de poluição seria ratificado pelos EUA. Isso enfraqueceu o Protocolo de Kyoto, primeiro instrumento global de corte de CO2, ferido de morte em 2001, quando George W. Bush retirou o país do tratado.

Passamos os anos seguintes buscando maneiras de trazer os EUA de volta, sempre nos termos deles. Em 2009, assistimos aos EUA, mancomunados com a China, destruírem a chance de um pacto climático universal em Copenhague. E, em 2015, fizemos um contorcionismo jurídico para criar, em Paris, um acordo cujo cumprimento fosse obrigatório, mas as metas fossem voluntárias. Era a única maneira de ter os EUA a bordo. 

Suportamos estoicamente as ofensas americanas em cada COP, tentando impor obrigações a países em desenvolvimento ao mesmo tempo em que se negavam a adotar metas compatíveis com sua responsabilidade histórica. Sempre temendo ofender os pobrezinhos e evitar que eles saíssem do acordo — o que aconteceu do mesmo jeito em 2017. Paramos tudo por quatro anos, à espera deles. Eles voltaram. E, agora, sairão de novo.

A matemática do clima é implacável: as 5,2 bilhões de toneladas de CO2 emitidas pelos EUA precisarão ser cortadas por outros países. Os trilhões de dólares que o país deve ao Sul Global precisarão ser pagos por alguém. Só que o mundo não pode esperar mais a volta dos americanos, sob pena de os prejuízos da crise climática se tornarem impagáveis. Teremos de avançar sem eles. 

Por pior que seja, Trump não conseguirá reverter a trajetória declinante das emissões americanas. A economia real já precificou a descarbonização, o carvão agoniza e as energias renováveis bombam até nos estados mais republicanos. O mais célebre trumpista fez fortuna vendendo carros elétricos. A indústria do petróleo se agarrou a Trump para ter uma sobrevida, mas o relógio está batendo para eles. Vai demorar mais, mas o fim dos fósseis virá para a América. E pode vir até mais rápido no resto do mundo sem os EUA melando as decisões das COPs. Num cenário nem de longe impossível, produtos americanos de alto teor de carbono poderão enfrentar taxações mundo afora.

Sem os EUA, o Brasil, presidente da COP30 e um dos raros portadores de boas notícias no clima em 2024, é automaticamente alçado a nova liderança global nessa área. Espera-se que o país apresente uma meta climática transformadora (as indicações preliminares, infelizmente, vão no sentido oposto) e que use seu capital político e a legendária habilidade de seus diplomatas para ajudar a guiar o mundo no sentido de implementar a decisão da COP28 de eliminar os combustíveis fósseis.

O teste da cooperação climática pós-Trump começa na segunda-feira que vem em Baku. É uma COP para discutir dinheiro e que tem tudo para fracassar diante do resultado da eleição americana. Mas é o momento para o resto do mundo aceitar o divórcio, isolar os EUA e estabelecer novas bases para o diálogo.

*Coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima 

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