Rachel Quintiliano*
O assunto mais debatido com relação às eleições nos Estados Unidos é, sem dúvida, o impacto econômico e político de um possível retorno de Donald Trump à Casa Branca. Desde especulações esdrúxulas até análises seríssimas. Esse tem sido o assunto nos principais veículos de comunicação, nos espaços de articulação internacional e nas rodas de conversa em muitos lugares.
Muito tem se falado, também, sobre a importância do voto de pessoas imigrantes, negras, latinas e mulheres como um pêndulo que pode dar vantagem ou desvantagem para ele ou para a atual vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Diante de um cenário ainda indeciso, cujo dia principal deve ser hoje, é importante jogar luz na importância simbólica da candidatura de uma mulher autodeclarada negra para o cargo de presidente da maior potência mundial: os Estados Unidos.
Na primeira eleição de Barack Obama, em 2008, enquanto a imprensa dava as últimas notícias e se preparava para anunciar o então senador pelo estado de Illinois como o novo presidente eleito do país, em um diálogo sobre o assunto com a minha avó paterna, uma mulher negra, liderança em sua comunidade e analfabeta, rapidamente ouvi: "Agora haverá um presidente negro".
Antes de Obama, em muitos outros países, especialmente no continente africano, vários outros homens negros já tinham sido eleitos e, em um ímpeto de arrogância juvenil tardia, tratei de informá-la sobre o assunto. Fui corrigida imediatamente. "Eu sei disso, mas estou falando de um país poderoso, que determina muita coisa, inclusive aqui".
Alguns paradigmas foram quebrados diante de meus olhos naquele momento. O primeiro é que só pessoas letradas e bem-educadas na formalidade colonizadora podem ser consideradas intelectuais. O segundo que, afastadas as análises de tendência política e outras questões, sim, representatividade importa.
A eleição de Barack Obama naquele ano e, depois, a sua reeleição impactaram não só os Estados Unidos, mas obviamente contagiaram outros países, inclusive o Brasil, no sentido de uma maior representatividade negra em países democráticos, tanto para cargos no Executivo quanto no Legislativo. Não é à toa que, hoje, a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, é a primeira mulher negra a disputar as eleições para o cargo mais alto daquele país.
Com relação ao Brasil, infelizmente, não se pode fazer uma relação direta dessa possível influência porque os dados sobre raça/cor dos candidatos brasileiros pós-eleição de Obama não estão disponíveis no site do Superior Tribunal Eleitoral (STF), apesar de o quesito raça/cor ser aplicado em pesquisas nacionais desde o fim do século 18. Entretanto, nas eleições de 2014, no Brasil, as pessoas brancas representavam 54,96% dos candidatos, pretas 9,25%, pardas 35,1%, amarelas 0,46% e indígenas 0,32%. As pessoas do gênero feminino eram 31% e do masculino 69%.
Agora, em 2024, as mulheres foram 34% e os homens 66%. Pessoas brancas 46,83%, pretas 11,32%, pardas 40,3%, amarelas 0,39% e indígenas 0,56%. Isso indica, que apesar do avanço do racismo e do machismo que coloca determinados grupos em lugar de desvantagem, especialmente mulheres e pessoas negras no Brasil, a passos lentos, enxerga-se avanço.
A outra metade do copo pode ser observada, e, sem dúvida, isso tem relação com representatividade, tanto de Barack Obama quanto de Dilma Rousseff, primeira mulher no Palácio do Planalto, e com todas as mobilizações do movimento social negro e feminista, especialmente desde a redemocratização do Brasil.
Portanto, a despeito de Kamala Harris representar uma ideia de "novo" para os Estados Unidos ou de se tornar presidente, o fato de ela ser a primeira mulher, negra, descendente de imigrantes a disputar as eleições da maior potência mundial pode, sim, dar início a uma espiral ascendente de candidaturas femininas, negras ou "identitárias", como muitos gostam de dizer, mundo afora, o que, em outras palavras, pode significar o plantio de uma boa semente por mais equidade.
*Jornalista e escritora
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