OPINIÃO

O sangue azul e o padrão de concessões e consumo

Deveríamos, em algum momento, discutir as legislações de concessão e dar um tempo nos debates sobre racismo

Ronald Siqueira Barbosa — Professor e engenheiro de telecomunicações, presidente do Instituto Nacional Afro-Brasileiro (Inabra)

 

Certa vez, conversando com um amigo sobre se era possível atingir o topo no nível da escala social apenas com conhecimento, ele me respondeu que não. Argumentou que, para isso, é necessária uma grande mudança no nosso nível social e de toda uma população. Além disso, eu mesmo não poderia, disse ele, pois não tinha sangue azul. Na época, isso me soou como um sistema de casta.

A história nos revela que, desde o antigo Egito, na Grécia, Europa e a Ásia — quer dizer, onde houvesse classes de nobres e de plebeus —, acreditava-se serem os nobres os representantes de sangue azul e que, por isso, podiam ser interlocutores entre os deuses e o povo.

Quando, atualmente, trazemos para os campos social e político e para as diversas áreas de atuação profissional e artística, observamos que, para o entendimento pleno de uma mensagem, há a necessidade, algumas vezes, além da interlocução, de uma transdução na transmissão e na recepção. O termo significa, na física, processo em que uma energia transforma-se em outra diferente. 

Essa interlocução pode ser feita por um agente governamental, um político, um parente influente, um militar ou uma instituição. Durante muito tempo, a Europa foi uma poderosa interlocutora a partir de conquistas, nem sempre ortodoxas. Com o passar do tempo das colonizações e, depois, com o processo de independência, outros interlocutores apareceram.

Uma das minhas antigas curiosidades tem a ver com a palavra interlocução, e acho que os historiadores poderiam nos dizer ou ajudar a descobrir. Quais foram os interlocutores históricos do Brasil desde o Império até a República? Até porque foram os balizadores de todo o processo político, principalmente da legislação de Estado. 

Sabemos que foi com o Iluminismo que se delinearam ideologicamente as concepções e identidades, pois o europeu, o africano, o asiático e o indígena transformaram-se no branco, no negro, no amarelo e no vermelho.  

Com essa nova classificação, houve um limiar entre aqueles que poderiam aprender e criar cientificamente e aqueles destinados à servidão. A Europa que passara pelo regime de escravidão, pelo feudalismo, assistiu depois, à distância, a adoção pelo governo português, no Brasil, da política escravagista para incrementar a consolidação da nova terra descoberta.

Nesse mesmo período, no Brasil, ganhou força a ideia de se realizar uma interlocução perene entre elite e sociedade — ou seja, um verdadeiro crime perfeito, conceder sob os auspícios da monarquia títulos de nobreza para traficantes de escravizados. 

Essas benesses, com raras exceções, eram meritórias. Concessão para exploração de serviços, permissão, autorização e licença. O nome que deram a essa prática foi e é ainda uma forma de ter controle da situação e justificar com deboche e soberba um privilégio a amigos, parceiros do mesmo partido político, da mesma religião, para que assumam cargos federais, estaduais e municipais.

Isso também foi verdade para a exploração dos serviços públicos nos âmbitos federal, estadual e municipal e até de quiosques de praia. Isso ocorreu e continua acontecendo, na maior parte das vezes, em prejuízo de toda uma população preta que, como inundações e quedas de raio, acontecem todos os anos à nossa vista, descaradamente. Na concessão, a interlocução fica restrita aos concessionários ou prestadores de serviços.

A meu ver, valorosos e aguerridos líderes gastam tempo precioso discutindo racismo e intolerância, enquanto a carruagem passa e as riquezas produzidas ficam nas mãos de poucos. A riqueza produzida no Brasil não reflete o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da maioria da população, confirmando que temos essa prática de casta no país. 

Nos próximos 40 anos, nosso foco mudará de posição para trabalhar todas as possíveis formas de interlocução que possam fazer avançar o progresso da maioria da população brasileira, que é preta e não pode ficar sujeita à soberba da esquerda que acha que temos apenas uma luta de classes, bem como à arrogância da direita que nos despreza ao considerar que as nossas necessidades são iguais às de todos os brasileiros. 

O 20 de novembro há de vir como feriado nacional, mas deveríamos, em algum momento, discutir as legislações de concessão e dar um tempo nos debates sobre racismo. Na prática, estaríamos atualizando a pauta das nossas discussões e reivindicações. Em janeiro de 2024, entrou em vigor a nova Lei das Licitações, já pensou nisso? E nosso interlocutor?

 

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