Futebol

Nelson Rodrigues e o botafoguense

Como o escritor explica a alma do torcedor alvinegro e a longa espera pelo possível título inédito da Libertadores em tempos de SAF e investimento de John Textor — o dono nascido nos Estados Unidos

O craque das letras tricolor traça um perfil do torcedor do clube de General Severiano no texto O botafoguense publicado em 4 de agosto de 1956 -  (crédito: Reprodução)
O craque das letras tricolor traça um perfil do torcedor do clube de General Severiano no texto O botafoguense publicado em 4 de agosto de 1956 - (crédito: Reprodução)

É mais fácil conquistar título inédito na Libertadores do que na Liga dos Campeões da Europa. A contar de 2001, marco inicial do século 21, sete times acessaram pela primeira vez a sala de troféus do principal torneio continental de clubes da América do Sul: Once Caldas, Internacional, LDU, Corinthians, Atlético-MG, San Lorenzo e Fluminense. Nesse mesmo período, apenas o Chelsea e o Manchester City posaram de calouros no degrau mais alto do pódio da Champions League.

Campeão em 2013, o Galo cobiça o bi em 2024. O ineditismo flerta com o Botafogo. O time carioca pode ser o último dos 12 tradicionais do futebol brasileiro a ostentar a Glória Eterna depois do pioneirismo do Santos e do legado abraçado por Cruzeiro, Flamengo, Grêmio, São Paulo, Palmeiras, Inter, Corinthians, Atlético-MG e Fluminense.

Por que o Botafogo espera por esse título há tanto tempo? Uma das justificativas é o Santos de Pelé — o calo na chuteira do Glorioso nos tempos de Mané Garrincha. Mas, revirando meus livros de futebol, encontro uma resposta bem mais profunda em uma crônica escrita por Nelson Rodrigues.

O craque das letras tricolor traça um perfil do torcedor do clube de General Severiano no texto O botafoguense publicado em 4 de agosto de 1956 na revista Manchete Esportiva depois de um empate por 0 x 0 com o Vasco.

Nelson Rodrigues define o devoto do Botafogo como diferentão: "Há, porém, um torcedor, entre tantos, entre todos, que não se parece com ninguém e que apresenta uma forte, crespa e irresistível personalidade. Ponham uma barba postiça num torcedor do Botafogo, deem-lhe óculos escuros, raspem-lhe as impressões digitais e, ainda assim, ele será inconfundível. Por quê? Pelo seguinte: — há, no alvinegro, a emanação específica de um pessimismo imortal. O torcedor do Botafogo é o único que, em vez de esperar a vitória, espera precisamente a derrota".

Não vejo razão para aflição na decisão de hoje. Talvez, por não ser botafoguense. Considero, sinceramente, o time de Artur Jorge superior ao Galo de Gabriel Milito. Porém, nem o mais otimista alvinegro aceita a minha opinião.

Freud, ou melhor, Nelson Rodrigues explica: "Ele (o botafoguense) compra o seu ingresso como quem adquire o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer. No dia em que retirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e, sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino".

Insisto, não existe razão para sofrer. Há motivos para curtir o Botafogo. Desfrutar o baile de debutante em dia que parecia não chegar nunca. O limite havia sido o triangular semifinal da Libertadores em 1973. Cinquenta e um anos depois, aquela missão está parcialmente completa. Falta o título.

A fórmula é a mesma dos dois campeões inéditos da Champions League neste século. O Botafogo pode ser o primeiro time da América do Sul a conquistar a Libertadores bancado por investidor estrangeiro — o estadunidense John Textor. O russo Roman Abramovich levou o Chelsea ao bi (2012 e 2021). Os xeques Mansour bin Zayed Al Nahyan e Khaldoon Al Mubarak brindaram o Manchester City (2023). Quem sabe chegou o dia de lavar a alma e estabelecer uma nova ordem econômica.

postado em 30/11/2024 06:00 / atualizado em 30/11/2024 06:00
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