Opinião

Mafalda vai à ONU

Que bom seria se Mafalda pudesse, de fato, traduzir para os diplomatas e signatários das Nações Unidas as reais necessidades do mundo

Fico imaginando como Mafalda, que tanto queria traduzir para o mundo questões como liberdade, democracia, igualdade de gênero e equidade social, reagiria às (in)decisões mais recentes dos países-membros da ONU -  (crédito: ANDRES LARROVERE)
Fico imaginando como Mafalda, que tanto queria traduzir para o mundo questões como liberdade, democracia, igualdade de gênero e equidade social, reagiria às (in)decisões mais recentes dos países-membros da ONU - (crédito: ANDRES LARROVERE)

Mafalda fez 60 anos e, de presente, ganhou uma visita à sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Na tirinha 491, a questionadora menininha (Mafalda sempre terá 6 anos), criada pelo argentino Quino, expressa o desejo de ser tradutora na ONU. Para comemorar seu aniversário, na quarta-feira passada, Guillermo Lavado, o sobrinho de Quino, foi com ela a Nova York, acompanhado do escultor Pablo Irrang, que deu vida à personagem. Mafalda ganhou crachá com foto, sentou-se no plenário e fez fotos na cabine de tradução.

Que bom seria se Mafalda pudesse, de fato, traduzir para os diplomatas e signatários das Nações Unidas as reais necessidades do mundo. No sábado passado, eles foram os protagonistas de (mais) um fracasso retumbante no Azerbaijão, depois de duas semanas discutindo o financiamento para adaptação às mudanças climáticas.

A ONU calculou que, para os países conseguirem investir em energia limpa, seria necessário um fundo global de US$ 1 trilhão anual até 2030. A COP terminou com os ricos — que serão os doadores — prometendo "até" US$ 300 milhões. Embora representantes do Sul Global tenham chamado a quantia de piada, o presidente da conferência, o azeri Mukhtar Babayev, bateu o martelo por volta das 20h de Brasília (3h de domingo em Baku) para anunciar o acordo.

Defensora da democracia e da voz das mulheres, Mafalda deve ter ficado muito indignada com a atitude de Babayev, especialmente quando Chandni Raina, representante da Índia na sessão plenária final, abriu o microfone para denunciar que não havia concordado com a decisão — os textos da COP precisam ser aprovados por unanimidade — e que o presidente da conferência ignorou seu pedido para falar antes da martelada. 

Mafalda também saiu irritadíssima, tenho certeza, com o fato de o documento final não mencionar a necessidade de eliminar o uso dos combustíveis fósseis. Está mais do que comprovado pela ciência que as emissões recorde de CO2, principal gás de efeito estufa, são causadas pela queima de petróleo, gás natural e carvão. O que mais esperar de uma conferência sobre mudanças climáticas sediada em um petroestado? Cujo presidente discursou, na abertura, que o "petróleo é presente de Deus e não deve ser recusado"?

Duas semanas antes da COP do clima, outra COP (sigla de Conferência das Partes) terminou vexatória. Terminou, aliás, sem acabar. A Conferência da Biodiversidade, realizada na Colômbia, não teve declaração. Foi simplesmente suspensa, porque, novamente, não houve acordo sobre financiamento (pelo menos, não se forjou uma "decisão unânime"). No domingo, serão encerradas, na Coreia do Sul, as negociações sobre o tratado internacional do plástico. Por enquanto, ninguém se entendeu. Já se pode antever o seu melancólico fim. 

Fico imaginando como Mafalda, que tanto queria traduzir para o mundo questões como liberdade, democracia, igualdade de gênero e equidade social, reagiria às (in)decisões mais recentes dos países-membros da ONU. Consigo visualizá-la saindo da sede das Nações Unidas com o crachazinho na mão, depois de escrever, no muro, uma frase que, tempos atrás, rabiscou sobre um globo terrestre: "Cuidado, irresponsáveis trabalhando!".

postado em 29/11/2024 06:00
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