Opinião

Chegamos muito longe

O fantasma da ditadura sempre esteve e estará à espreita. A democracia ainda dói para uns e outros. Mas também sabemos que é antídoto para todo o resto

 Filme Ainda estou aqui: destaque absoluto para Fernanda Torres -  (crédito:  Video Filmes/Divulgação)
Filme Ainda estou aqui: destaque absoluto para Fernanda Torres - (crédito: Video Filmes/Divulgação)

Os acordes da música de Erasmo Carlos ainda ressoam na minha cabeça: "Eu cheguei de muito longe... E a viagem foi tão longa...". Na verdade, tudo ficou ressoando aqui por dentro desde que saí do cinema após assistir ao comovente e fortíssimo Ainda estou aqui, filme de Walter Salles, com base no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, atuação estupenda de Fernanda Torres e grande elenco, ovacionado nos festivais e candidato brasileiro elegível a concorrer ao Oscar na categoria Melhor Filme Internacional. 

Não quero dar spoiler, nem ficar repetindo tudo o que já foi dito. Por isso, falo das minhas sensações, que, no fim, podem ser as suas, sobretudo se for uma mulher. O sequestro e o assassinato de Rubens Paiva nos porões da ditadura militar e tudo o que se seguiu, tudo visto pelo prisma da esposa dele, Eunice Paiva, reúne beleza e angústia em igual proporção. 

O que é calar em uma situação dessas? O que é calar e seguir lutando para criar os filhos? O que é calar e, ainda assim, continuar na busca por justiça? O silêncio angustiante de Fernanda na pele de Eunice permeia todo o filme e permanece como um grito abafado no nosso peito sem coragem para sair. Ainda está aqui. E imagino por quanto tempo foi companheiro desta mulher corajosa e sobrevivente ao horror da ditadura. 

"É preciso dar um jeito, meu amigo...", como diz o título da música entoada por Erasmo, parte da trilha sonora do filme. Eunice deu seu jeito. Seguiu e falou quando e o quanto pôde até ter o justo reconhecimento da morte do marido, com a certidão de óbito em mãos — o que não alivia em nada o sentimento que perdura em nós depois do filme. Penso em quantas Eunices viveram histórias semelhantes, nas famílias que tiveram suas vidas sequestradas e sobreviveram com sequelas nunca medidas, pois nem parece possível fazê-lo.

De certa forma, o Brasil vem acertando suas contas com o passado, mas não há pagamento ou reconhecimento suficiente para quem viveu o abismo do sequestro, do desaparecimento, da tortura, da morte sem corpo. No filme, é possível sentir o vão que se abre no chão da família Rubens Paiva. A gente cai junto, bem fundo. E, ainda assim, Eunice resiste e reconstrói as bases seguras para ver seus filhos crescerem. É, de fato, comovente. E Fernanda nos convida a habitar corpo e alma dessa mulher notável. 

Chama atenção a coincidência do lançamento do filme no momento em que o país assiste perplexo à trama desvendada pela Polícia Federal sobre a tentativa de golpe para evitar a posse de um presidente legitimamente eleito, incluindo aí planos de assassinato. Mas não existem coincidências. 

Ainda há histórias a serem contadas e o fantasma da ditadura sempre esteve e estará à espreita. A democracia ainda dói para uns e outros. Mas também sabemos que é antídoto para todo o resto. Que ninguém mais precise passar pelo que Eunice e sua família passaram. Sejamos sempre vigilantes e conscientes. Já chegamos muito longe, como canta Erasmo; não dá para retroceder.

postado em 24/11/2024 00:01
x