Opinião

Tirania da ignorância

É desalentador pensar que pessoas que sempre foram beneficiadas com a vacinação, evitando, assim, doenças potencialmente letais ou desabilitantes, de repente, se voltam contra ela

No Distrito Federal, 63 mil adolescentes entre 10 e 14 anos tomaram a primeira dose e 23,4 mil, o reforço. E, para 40 mil jovens, o prazo de retorno de 90 dias expirou -  (crédito: Jhonatan Cantarelle/Agência Saúde)
No Distrito Federal, 63 mil adolescentes entre 10 e 14 anos tomaram a primeira dose e 23,4 mil, o reforço. E, para 40 mil jovens, o prazo de retorno de 90 dias expirou - (crédito: Jhonatan Cantarelle/Agência Saúde)

Confesso: por um tempo, fui adepta do movimento antivacina. Me esperneava, fugia e, um dia, minha irmã me escondeu no banheiro do hospital pediátrico, na vã tentativa de evitar a antitetânica depois que sofri um corte na perna. Pesa em meu favor que eu tinha uns 8 anos à época. Meu argumento para odiar as seringas e agulhas era o de que doía — considero a alegação mais inteligente e justa do que as baboseiras utilizadas pelos "anti-vaxxers" para se recusarem a levar uma picadinha no braço ou no glúteo. 

Na escola, aprendi sobre a revolta das vacinas no Rio de Janeiro, ocorrida em 1904. Depois, assistindo à série House, nos anos 2000, eu soube da existência dos anti-vaxxers em um episódio no qual o Hugh Laurie explode com um casal que se recusava a imunizar um bebê. Aquilo tudo parecia tão distante: um episódio histórico do início do século passado, um programa de TV de outro país. 

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Mal poderia imaginar que, um dia, esse movimento chegaria ao Brasil e que até a Presidência do país do Zé Gotinha seria ocupada por um simpatizante. Porque, se há algo que funciona muito bem por aqui, e do qual sempre nos orgulhamos, é o programa nacional de imunizações. Já saímos da maternidade com o cartãozinho de vacinas, que será atualizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) até o fim da vida. 

É desalentador pensar que pessoas que sempre foram beneficiadas com a vacinação, evitando, assim, doenças potencialmente letais, como varíola, meningite e sarampo, ou desabilitantes, como a poliomielite, de repente se voltam contra ela. Os argumentos de quem é contra as vacinas carecem de qualquer respaldo científico. 

Os mais conspiradores dizem que o governo quer, na verdade, inserir um chip na gente. Ninguém vai inserir um chip na gente — nosso celular com GPS, do qual não largamos nem para dormir, é o melhor rastreador, e, mais do que o governo, quem agradece por isso é a Meta e o Google. Há quem apele também para os direitos civis. Não se vacinar seria um ato político. Mesmo argumento usado em 1885 por um médico canadense que considerava a imunização compulsória uma tirania e "dotorania".

Também existe muita gente que tem medo da vacina devido ao bombardeio de informações falsas, pseudocientíficas, disparadas pelos "tios do zap", que atribuem a ela desde autismo a reações alérgicas letais. O curioso é que tem "influencer" cheio de substâncias estéticas aplicadas no corpo inteiro — algumas até proibidas pela vigilância sanitária — que se dignam a falar mal de imunizantes desenvolvidos rigorosamente em laboratórios, incluindo os públicos, por achá-los "suspeitos".

Nos Estados Unidos, o movimento antivacina ressuscitou o sarampo e a coqueluche. No Brasil, há cinco anos, perdemos o certificado de erradicação do sarampo, da rubéola e da síndrome da rubéola congênita. Na semana passada, o país reconquistou o documento. Uma enorme vitória contra a ignorância e a favor da vida.

 

postado em 22/11/2024 06:00 / atualizado em 22/11/2024 08:42
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