Décadas antes do "hating" e do "cancelamento" de famosos, meu avô já recriminava os filhos quando estes diziam detestar alguma figura pública. Perseguido e torturado pelo governo Getúlio Vargas, Gervásio tinha a grandeza de não cultivar o ódio dentro de casa. Segundo minha mãe, ele sempre dizia: "Pense neles como seres humanos, não como artistas ou políticos".
Embora não tenha conhecido meu avô, assassinado por motivos políticos em 1963, o admiro imensamente. Quando ficou claro que Donald Trump ganharia as eleições presidenciais, ainda na madrugada de quarta-feira, tentei colocar em prática o ensinamento de Gervásio e imaginar o magnata como uma pessoa que sente dor, medo, fica triste ou ri de uma piada boba. Para tanto, precisava conhecê-lo. Então, comecei a ler sobre Trump.
Assim, fiquei sabendo que, em 1966, o jovem Donald conseguiu quatro dispensas da Guerra do Vietnã. Dois anos depois, foi considerado apto pelo serviço militar, mas um médico atestou que um esporão ósseo o tornaria eternamente desqualificado para pegar em metralhadoras e lutar gloriosamente por seu país. Logo ele, um ardoroso defensor das armas. Nas duas décadas do conflito, 58 mil norte-americanos morreram em campo.
Era de se imaginar que ser herdeiro do milionário da construção civil Fred Trump facilitaria a vida do jovem Donald em muitos aspectos. Mas, segundo disse à rede NBC, "não foi fácil para mim, meu pai me deu um pequeno empréstimo de US$ 1 milhão e tive de devolver com juros". Pobre jovem Donald, com apenas um milhão de dólares na carteira para começar a carreira. Segundo o simulador CPI Calculation, o montante, na década de 1970, equivalia a mais de US$ 8 milhões de hoje, considerando a inflação.
Nos anos 1980, o agora adulto Donald entrou para a lista dos mais ricos do mundo. Foi quando também, de acordo com uma investigação do The New York Times, deixou de pagar impostos, além de cometer outras fraudes fiscais e corporativas. A vida do magnata, desde então, parece ter sido exatamente o que se espera da vida de um magnata. Investimentos em hotéis, prédios luxuosos, cassinos, clubes noturnos, fofocas nas colunas sociais, casamentos, divórcios etc.
Até que, em 2016, surgiu como pré-candidato à Presidência norte-americana. Foi considerado uma piada, ganhou, perdeu, não aceitou, voltou, ganhou novamente. Nesse meio tempo, tornou-se réu em numerosos processos civis e criminais, foi flagrado por um microfone aberto admitindo apalpar mulheres sem consentimento, disparou contra minorias, disse que os imigrantes haitianos comiam pets e por aí vai.
Lendo sobre a vida familiar de Trump, aprendi que ele tem 10 netos, com idades entre 17 e 5 anos. A mais velha, Kai, contou recentemente que o vô Donald dá doces para eles, escondido dos filhos. Uma travessura que o aproxima mais de um ser humano comum do que de um magnata eleito presidente dos Estados Unidos.
Provavelmente, a netinha mais nova, Carolina, acha muito divertido ganhar gostosuras do vô Donald. Um dia, ela descobrirá que esse mesmo homem rasgou o Acordo de Paris, instrumento que tenta deixar um planeta menos sufocante até o fim do século, com medidas como a redução do uso de combustíveis fósseis. Um dos slogans da campanha do republicano, contudo, foi "Perfure, baby, perfure", referindo-se aos muitos poços de petróleo que pretende conceder à exploração nos próximos cinco anos.
Sem sucesso na tentativa de enxergar Trump com empatia, penso na pequena Carolina que, em 2100, completará 81 anos. Qual mundo terá o vô Donald deixado para ela?
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