* Gunther Rudzit
Em 4 de fevereiro de 2022, os presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin se reuniram em Pequim para a abertura das Olimpíadas de Inverno. Contudo, o fato mais importante foi outro, mas que recebeu pouca atenção no Brasil: a declaração conjunta afirmando uma parceria sem limites entre os países, e que as relações internacionais haviam entrado em uma nova era.
Em vez das críticas costumeiras ao Ocidente, o documento foi uma clara declaração de princípios e uma nova visão de política internacional. Fundamentalmente, eles defenderam que o mundo seria multipolar, e que não haveria espaço para a imposição de uma única visão de democracia e de direitos humanos, fazendo com que esses devessem levar em conta a história de cada povo. Por fim, louvaram que essa nova era seria baseada em paz e cooperação.
A realidade dessa visão ficou clara em 24 de fevereiro do mesmo ano. No mesmo dia, a maior quantidade de aviões militares chineses ultrapassaram a linha divisória no Estreito de Taiwan, no que seria espaço aéreo taiwanês. Já na Europa, as forças militares russas invadiram a Ucrânia, dando início a uma guerra que já dura quase três anos. Esses eventos levaram o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, a declarar que o mundo vivia o enfrentamento entre democracias e autocracias.
Por outro lado, o Ocidente passa por uma "recessão democrática", termo que o cientista político Larry Diamond cunhou em 2014. Neste ano, dados indicavam a perda da confiança das pessoas no sistema democrático, e a ascensão de partidos de extrema-direita em vários países, principalmente na Europa. Essa preocupação passou a ser direcionada também aos Estados Unidos a partir de 2020, quando o ex-presidente Donald Trump se recusou a reconhecer a derrota na corrida presidencial, e incentivou a invasão ao Capitólio. Portanto, a eleição de 5 novembro tem vários outros aspectos do que somente a presidência.
As diferenças entre Donald Trump e Kamala Harris são claras, mas há alguns aspectos que não diferem muito. Em termos da economia, há sinais mistos. Ambos foram bastante vagos em suas propostas, mas não mencionaram o crescente endividamento público federal. A diferença seria de que, segundo o Comitê para a Responsabilidade do Orçamento Federal do Congresso, o plano da democrata aumentaria a dívida em aproximadamente US$ 4 trilhões, e o do republicano em US$ 7,8 trilhões. Além disso, ambos serão bastante protecionistas e defenderão a ajuda do governo para setores considerados estratégicos. Tudo isso poderá levar o FED a elevar os juros, o que impactará o mundo todo.
Talvez, a maior diferença seja em termos de política externa. Há um ponto em comum, de que a China é a maior ameaça à liderança global americana, o que na verdade já é um consenso nas elites americanas desde o governo Obama. Como enfrentar esta realidade é que difere os dois candidatos.
Kamala, apesar de não ter muita experiência em política externa, tem assessores experientes. Por isso, é de se esperar que sua atuação externa siga a linha do governo Biden, de unir o Ocidente contra as autocracias. Trump tem um histórico de confrontação com os aliados, principalmente os europeus. Ele chegou a ameaçar tirar os Estados Unidos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a aliança militar ocidental, caso os países europeus não aumentassem os seus orçamentos militares. Neste aspecto, ele estava correto.
Depois da anexação da Criméia, em 2014, pela Rússia, os governos da Aliança concordaram em estabelecer o patamar mínimo de 2% do PIB para gastos militares. Contudo, somente oito países haviam atingido esse objetivo, sendo que a Alemanha, a maior economia do continente, estava bem longe disso. Mais recentemente, Trump voltou ao assunto e disse que deixaria Putin fazer o que quisesse com aqueles que não fizessem a sua parte. Portanto, é de se esperar no mínimo um atrito constante entre Washington e seus aliados.
Tendo em vista as características do governo americano, o que importa não é só quem ocupará a Casa Branca, mas também, ou até mesmo, principalmente, como ficará a composição do Congresso. Se os republicanos controlarem as duas casas, os projetos mais radicais de Trump poderão ser implementados, já que hoje a Suprema Corte também é controlada por uma maioria republicana. Se o Senado for republicano e a Câmara for democrata, seus ímpetos poderão ser um pouco mais contidos.
Com Harris e um Congresso republicano, seria uma imposição de muitas agendas conservadoras, e teríamos um governo semiparalisado. Com Senado republicano e Câmara democrata, os embates seriam frequentes, e a não aprovação do orçamento poderia ser frequente.
Portanto, há muito mais em jogo nesta eleição de 5 de novembro do que somente a Casa Branca. Há aspectos sociais e políticos, internos e globais, em jogo. Isso se dá porque os Estados Unidos ainda são a única superpotência, e em um mundo dividido estratégica e politicamente, seu futuro é importante para o restante do mundo. Principalmente para as democracias, como o Brasil.
* Doutor em ciência política e professor de relações internacionais da ESPM e professor convidado da Universidade da Força Aérea (Unifa)
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