Mauro Rebelo — Biólogo marinho, doutor em biofísica, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e fundador da Bio Bureau.
Na COP16, em Cali, diariamente, surge uma nova tentativa de acordo sobre a repartição de benefícios do uso de Informação de Sequência Digital (DSI), mas o consenso ainda parece distante. Essa é a segunda COP de que participo, e vejo esse tema dominar discussões que começaram em 2016, no México. Confesso que essa discussão me surpreende. Entendo a importância dos fóruns internacionais para corrigir injustiças históricas, mas essa batalha é inglória e inócua.
O Protocolo de Nagoya, celebrado quase 20 anos após a Rio 92, ainda que não retroativo e sem reparação por séculos de exploração, reconhece a soberania das nações sobre sua biodiversidade e os direitos ao conhecimento tradicional associados, assegurando a repartição de benefícios por meio de leis como a 13.123 de 2015 no Brasil.
Normas como a brasileira encontraram resistência no setor empresarial e nos países que detêm alta tecnologia para transformar biodiversidade em produtos. A justificativa — com a qual concordo, como empreendedor — é que o maior valor não está no recurso bruto, mas no conhecimento e no investimento para convertê-lo em produtos (entram aí o custo e o risco regulatório, que reduziram drasticamente as novas moléculas de biodiversidade no mercado nos últimos 30 anos). Para a indústria, é compreensível — mas não aceitável — evitar o risco de repassar esse custo ao consumidor. Mas essa repartição funciona como um royalty sobre a biodiversidade e trouxe mais segurança jurídica para quem acessa esses recursos, conforme Nagoya.
Alguns países, no entanto, buscaram alternativas de bioprospecção sem qualquer repartição de benefícios. Encontraram essa possibilidade nas sequências de DNA digitais armazenadas em bancos públicos, as tais DSI. Como a maior parte desses dados é anterior ao Protocolo de Nagoya e está em domínio público, consideraram que não havia obrigação de repartição.
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Era uma afronta: insinuava que a biodiversidade "rica" poderia ser substituída por sequências do GenBank — dados que os próprios países biodiversos permitiram e até exigiram que fossem compartilhados para assegurar integridade científica. Era uma repetição da biopirataria histórica.
A resposta dos países biodiversos foi imediata: uma regulamentação específica para DSI na Convention Biological Diversity (CBD). Mas, a meu ver, essa proposta impulsiva foi não apenas desnecessária, mas contraproducente. Na prática, a maioria das DSI não concorre com Nagoya: uma sequência digital de DNA não é uma entidade isolada, pois depende do DNA adjacente, já protegido pelo protocolo. Além disso, muitas DSI estão fora de escopo por serem anteriores a Nagoya, restando apenas dados divulgados em bancos públicos à revelia das normas internacionais.
Há 10 anos, quando essa discussão começou, essas sequências poderiam ser relevantes, mas hoje não são mais. O sequenciamento de DNA avançou mais rápido que as negociações da COP, e bancos privados já superam o GenBank, em volume (até 10 vezes!) e em qualidade de sequências. Assim, o debate sobre DSI não resiste a uma análise econômica. Para os países biodiversos, o custo de monitorar o uso dessas sequências é alto; para os high-tech, dados públicos de baixa qualidade já não oferecem diferencial competitivo.
Nossos esforços deveriam focar em questões mais relevantes. As empresas que investem milhões em bancos de DNA não o fazem para bioprospecção tradicional. Estão treinando algoritmos de inteligência artificial (IA) para criar enzimas e proteínas sintéticas inspiradas, mas não derivadas, das naturais protegidas por Nagoya.
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Nagoya e a legislação brasileira são suficientes para garantir a repartição de benefícios no uso de sequências de DNA para treinar IA? Seria ético, sem recursos para desenvolver modelos nacionais, impedir que estrangeiros usem essas sequências em benefício da sociedade?
As respostas para essas questões não estão na COP ou na CBD. Dar voz aos oprimidos sem que tenham capacidade de ação é uma falsa inclusão. Os países biodiversos só explorarão plenamente o potencial de seus recursos quando dominarem a tecnologia de transformação. Receio que aprender biotecnologia seja a única forma das comunidades tradicionais converterem seu conhecimento em produtos de alta conveniência que o mercado demanda e, consequentemente, em riqueza. O tempo dos produtos de baixa tecnologia e baixo valor agregado passou.
É na tecnologia que precisamos avançar. Sem ela, a floresta será apenas mais uma commodity.
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