Opinião

O jornalismo como história da política externa brasileira

O livro Política externa e jornalismo é uma historiografia da política externa brasileira, assim como da evolução do sistema internacional, nas décadas mais intensas da reinserção mundial do Brasil

Os primeiros historiadores são os jornalistas, antigamente chamados de cronistas dos eventos correntes ou de memorialistas do cotidiano. Não importa muito o nome; se não fosse por eles, não teríamos outra história que não aquela feita nos gabinetes de Estado, nos atos da imprensa governamental, reportando a atividade dos donos do poder e suas interpretações exclusivas. Sem eles, a história se resumiria a um longo desfilar de relatos oficiais. 

Na política externa, sobretudo, a atividade jornalística é fundamental, uma vez que relações exteriores são conduzidas basicamente pelos governos, em nome do seus Estados. Em meus exercícios de historiador da diplomacia brasileira, além de recorrer ao exame dos documentos oficiais, sempre apelei aos relatos dos fatos correntes feitos por jornalistas brasileiros e estrangeiros. Mas esse tipo de material sempre foi mais abundante nas questões de política interna ou de economia, do que na informação e discussão dos fatos relativos à política externa. No plano interno, Carlos Castelo Branco talvez tenha sido o mais importante cronista da política brasileira, mas faltava alguém na área da política externa que pudesse competir com o seu padrão. Agora não falta mais: Maria Helena Tachinardi acaba de ocupar com maestria, e constância, um espaço que poucos jornalistas brasileiros souberam até aqui preencher: o relato circunstanciado, meticuloso, bem-informado, mas também opinativo, sobre mais de três décadas de política externa brasileira, um verdadeiro manancial de relatos objetivos que constituem um aporte decisivo a todos os historiadores que necessitam reconstruir os passos de nossa diplomacia desde os anos 1970 até nossa própria época. 

Entre fevereiro de 1974, data de sua primeira matéria, e junho de 2015, o último artigo catalogado no anexo do livro Política externa e jornalismo, foram 305 reportagens no total, selecionadas dentre milhares de outras, geralmente veiculadas na Gazeta Mercantil, entre 1980 e 2003, incluindo sua fase como correspondente em Washington, de 1996 a 1988. O núcleo do livro está organizado por governos e décadas, começando pela Guerra Fria, ainda nos anos 1980, que compreende também a nossa "década perdida", seguida pela globalização, nos anos 1990, logo agitada pelas manifestações antiglobalizadoras, até adentrar nos anos problemáticos da "guerra ao terror", nos anos 2000, que também testemunharam os primeiros desajustes nas relações internacionais, com novas tensões surgindo no horizonte. 

Mas, antes de percorrer todas essas décadas e governos, com base nas três centenas de trabalhos que redigiu ao longo de reportagens, viagens e estágios no exterior, ela oferece em três dezenas de páginas introdutórias os seus Princípios de política externa nas reportagens, com as ênfases sucessivas e as definições fundamentais dessa política: "soberania, autodeterminação, realismo, pragmatismo, autonomia e não intervenção" (página 33), que são também os eixos diretrizes com os quais sempre trabalhou a diplomacia brasileira. Para isso, ela se valeu não só de investigações e estudos próprios, bem como de ensaios acadêmicos e de declarações de diplomatas — entre eles, os embaixadores Rubens Barbosa (que assina o prefácio) e Fernando de Mello Barreto, que ofereceu uma orelha. 

Acompanhei alguns atos de "fabricação" dessas matérias, sobretudo ao longo das negociações comerciais multilaterais da Rodada Uruguai, da difícil construção do Mercosul e dos embates da Alca. Maria Helena interrogou pacientemente diplomatas, empresários, autoridades estrangeiras e glosou notícias que vinham do mundo todo, em coberturas sempre certeiras. O resultado é uma historiografia da política externa brasileira, assim como da evolução do sistema internacional, nas décadas mais intensas da reinserção mundial do Brasil, desde o período final da ditadura militar até o capítulo conclusivo, que remete à guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia e ao primeiro ano de Lula III. 

As notas, ao final, complementam a informação sobre alguns episódios e fornecem alguma bibliografia. A obra termina por onde começou, ao citar Gabriel Garcia Marques, que relatou sua "paixão insaciável" pela "melhor profissão do mundo". Maria Helena possui essa paixão, e conseguiu convertê-la num livro essencial aos historiadores do passado, assim como aos diplomatas do futuro.

carmensouza.df@dabr.com.br 

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