Dácia Ibiapina de Sousa — Cineasta, ex-diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC-UnB) e professora aposentada da UnB
O Distrito Federal, sem a presença otimista e luminosa de Vladimir Carvalho, já não é o mesmo. O dia 24 de outubro de 2024 é um dia para ver e rever os filmes de Vladimir Carvalho, especialmente O país de São Saruê e Conterrâneos velhos de guerra. São meus preferidos. Este último é um filme monumental sobre a construção da cidade monumental, Brasília. Vladimir dizia que, nesse filme, ele conseguiu juntar Nordeste e Centro-Oeste. Do Nordeste, vieram muitos trabalhadores para construir Brasília, e veio ele próprio com o seu cinema; e o Centro-Oeste, este já estava aqui, onde JK resolveu construir a nova capital.
Além dos filmes, Vladimir Carvalho criou a Fundação Cinememória, no início da W3 Sul. Uma casinha em que guardava a memória do seu cinema, do cinema brasiliense, do cinema da UnB, do cinema brasileiro. Vladimir viveu 89 anos. Faria 90 anos daqui a poucos meses. Nasceu em 31 de janeiro de 1935, ano da Intentona Comunista, ele fazia questão de dizer. Era comunista, como seu pai, figura marcante em sua vida. Aliás, a vida de Vladimir foi marcada por muitas pessoas importantes e por muitas obsessões. Melhor não tentar elencar. Ele já não está mais nessa dimensão para confirmar.
Tive a oportunidade de fazer um filme documentário sobre Vladimir Carvalho. É um DocTV, de 2004. Quando o abordei com a ideia de fazer um filme sobre ele, ele me pediu um tempo. Depois, concordou. Disse a mim que já tinha incomodado muita gente por causa de filmes documentários e que agora, na vez dele, não podia arregar.
Partimos então para fazer o filme. É uma longa história que não cabe contar aqui, justamente no dia em que nos despedimos de Vladimir. Prefiro compartilhar algumas imagens que povoam meu imaginário neste momento. Uma delas, Vladimir teimando comigo em João Pessoa. Não queria me levar à casa de Dona Elizabeth Teixeira em um bairro popular da capital paraibana. Acabou cedendo, em um dia em que nossa pauta caiu. Lembro-me da alegria de Dona Elizabeth Teixeira ao ver Vladimir Carvalho em sua casa. Ela contou que, após o 31 de março de 1964, dia do golpe civil-militar, Vladimir ficou encarregado de retirá-la em segurança do Engenho Galiléia, de Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas.
Na ocasião, no Engenho Galiléia, Eduardo Coutinho estava filmando Cabra marcado para morrer. Vladimir ficou encarregado de proteger Dona Elizabeth Teixeira para que ela não fosse presa pelas tropas mobilizadas pelo golpe. Ela conta que, posteriormente, Vladimir resolveu disfarçá-la de prostituta para levá-la para um local seguro, na casa de um familiar na periferia de João Pessoa. Ela vestiu um vestido de chita, fez cabelo e maquiagem, para que pudesse ser confundida com uma "mulher alegre". Essas imagens estão no DocTV Vladimir Carvalho: conterrâneo velho de guerra. Tenho muito orgulho de tê-las feito com nossa equipe. Aqui se nota o pudor. Nem Vladimir nem Dona Elizabeth pronunciaram a palavra prostituta. Preferiram "mulher alegre".
Lembro-me também de nós, em João Pessoa, comendo rubacão em um restaurante no dia do aniversário de Vladimir. Ele estava feliz degustando aquele rubacão paraibano no bairro em que morou com sua família em João Pessoa. Não vou dar a receita. Tem várias na web.
Finalmente, Vladimir não gostou do título de meu documentário sobre ele — Vladimir Carvalho: conterrâneo velho de guerra. Não lhe parecia razoável. Confundia, segundo ele, meu documentário com o dele, o clássico Conterrâneos velhos de guerra. Essa pendenga, vamos resolver futuramente, em outra dimensão.
E, para encerrar, em nosso DocTV, tem umas imagens de Vladimir Carvalho em Itabaiana, Paraíba, cidade onde nasceu, na linha do trem, que, em 2004, estava praticamente desativada. A linha do trem passava no meio da feira de Itabaiana. Umas crianças, montadas a cavalo, seguiam por ela enquanto a gente filmava. Vladimir, para fazer graça, abre os braços e o sorriso e segue pela linha do trem, como se fosse uma daquelas crianças. Para mim, essa é a imagem da despedida de Vladimir Carvalho.
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