LUTO

O antes e o depois

Uma das capacidades mágicas de Vladimir Carvalho era ser admirado e querido por todas as gerações que o seguiram. Vladimir nos deixou. Não, Vladimir não nos deixou. Quem viver verá

Sérgio Moriconi — Professor e crítico de cinema

Ontem, a cidade amanheceu cinza e triste. Não era o fenômeno atmosférico comum à nossa chuvosa estação primaveril. Vladimir Carvalho havia falecido na madrugada deste 24 de outubro, depois de sofrer um infarte havia duas semanas. Alguns dias antes, experimentou uma das grandes alegrias de sua vida ao tomar conhecimento de que a sua Fundação Cinememória podia ser finalmente abrigada num dos espaços do Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB. Era uma luta solitária de décadas. Esse regozijo, quase júbilo, está documentado na entrevista que deu para a jornalista Márcia Zarur, momentos antes de sentir uma forte indisposição e ser, então, encaminhado para um hospital. Alegria e dor, paradoxo funesto. Ninguém de sua convivência entrevia o que estava para acontecer. Dinâmico, lúcido, saúde de ferro, Vladimir era o esteio, um dos dínamos da atividade cinematográfica em Brasília. 

Cineasta, militante, o realizador de O país de São Saruê, clássico incontornável do documentário brasileiro, era reconhecido aqui no país e fora dele como um dos grandes do cinema de não ficção. The social documentary in latin america, editado por Julianne Burton para a Universidade de Pittsburgh, dedica a ele generosas páginas num capítulo escrito por Jean-Claude Bernardet. Aqui cabe a pergunta: o que seria do cinema de Brasília sem a presença de Vladimir Carvalho? Talvez, seja impossível dizer, mas o fato é que ele, por meio de sua atuação política na ADB-DF e de outras entidades, criou muitas das bases que estão na origem das estruturas que proporcionaram e ainda proporcionam a produção de cinema na capital. Criação de cotas regionais, editais regionais e nacionais foram conquistas inauditas, especialmente se levamos em conta as condições políticas adversas. Era o tempo das ditaduras militares, vocês se lembram, não é mesmo?

Vladimir soube navegar nessa soturna e turbulenta circunstância histórica para construir uma das mais sólidas cinematografias do cinema documental. Isso desde o início, quando faz parte da equipe de Aruanda, de Linduarte Noronha, curta seminal que inaugura o documentário brasileiro moderno (e maduro), citado por Glauber Rocha como uma de suas influências e referência para a eclosão do Cinema Novo. Vale assinalar que o nome de Carvalho está nos créditos do filme de forma insatisfatória, não fazendo jus à importância que teve para a construção da narrativa da obra. Mas isso é outra história. Com o singelo e belo Romeiros da guia, de 1960, faz sua estreia na direção; depois, em 67, com A bolandeira, ambos com um quê da pureza poética do cinema de Humberto Mauro, reafirma e refina seu estilo dos primeiros tempos. A bolandeira traz Vladimir para Brasília, primeiro como um dos participantes do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, depois, por circunstâncias rocambolescas, como professor de Cinema da Universidade de Brasília (UnB).

Paraibano, o realizador de longas como O engenho de Zé Lins (2007), O homem de areia (1982), O evangelho segundo Teotônio (1984) e Cícero Dias - A compadre de Picasso (2016) não nega suas raízes culturais, muito menos suas convicções políticas de esquerda. Mas é principalmente aos desvalidos, explorados e deserdados da sorte que Vladimir consagra uma boa parte de sua obra. Os desfavorecidos e esquecidos estão também presentes nos filmes de sua "fase" brasiliense, vide Conterrâneos velhos de guerra (1991). Mas há também um mergulho na cultura da região do Centro-Oeste, que chamava de "um sertão molhado", e do Entorno de Brasília, como atestam Quilombo (1975) e Mutirão (1976). O seu olhar "realista" nunca é reducionista. Apesar de crítico em relação à exploração do homem pelo homem — aludindo aqui a um viés marxista —, esse seu "realismo" vem sempre acompanhado de um sopro lírico, como definiu certa vez David Neves. 

E é isso mesmo. Às vezes, sua obra toma uma direção desconcertante, como quando resolveu fazer Rock Brasília — Era de ouro (2011), ele, de uma geração inteiramente distinta. Vladimir tinha, e teve, a capacidade mágica de fazer entrever — por meio da continuidade regular de sua produção — o pioneiro e revolucionário curso de cinema da UnB idealizado por Darcy Ribeiro e levado adiante por Paulo Emílio Salles Gomes, Lucila e Jean-Claude Bernardet. Uma segunda de suas capacidades mágicas era ser admirado e querido por todas as gerações que o seguiram. Assim como os Beatles. Vladimir nos deixou. Não, Vladimir não nos deixou. Quem viver verá. Cito as palavras de Alberto Moravia no funeral de Pier Paolo Pasolini ao se referir à obra do diretor italiano que chamou de um realismo arquetípico, ao mesmo tempo gentil e misterioso, portanto, a-histórico.

 

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