MARIA SIQUEIRA — Confundadora e diretora de Políticas Públicas do Instito Pacto contra a Fome
Valioso e raro, o tempo era considerado um deus implacável desde a mitologia e, nos dias atuais, mostra sua força imparável. Ele também é uma preocupação central para iniciativas como o Pacto Contra a Fome e organizações globais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), além de governos de todo o mundo, que buscam cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até 2030.
As dificuldades impostas ao cumprimento das metas estão descritas no Relatório sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2024, da ONU. A insegurança alimentar continua em níveis acima dos relatados em 2019 antes da covid-19. Na avaliação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o mundo regrediu 15 anos nos indicadores de insegurança alimentar, tornando cada vez mais desafiador atingirmos a meta de acabar com a fome e a subnutrição até 2030.
Ao mesmo tempo em que 783 milhões de pessoas passam fome globalmente, o equivalente a mais de um bilhão de refeições são desperdiçadas diariamente. Essa incoerência não pode existir em um contexto de crise alimentar e climática. Em 2022, apenas 21 países incluíram a perda e a redução do desperdício de alimentos em seus planos de metas climáticas para o cumprimento do Acordo de Paris, as chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC). O processo de revisão das NDC de 2025 oferece uma oportunidade fundamental para aumentar a ambição climática, integrando a perda e o desperdício.
Apesar da fome ser um problema estrutural relacionado à pobreza, desigualdade e nossos sistemas alimentares, atuar para reduzir o desperdício e as perdas em favor da segurança alimentar é um ganho triplo — ambiental, social e econômico. Exemplo disso é a redistribuição de comida para pessoas em situação de vulnerabilidade pelos bancos de alimentos. Usando o que é descartado no varejo, por exemplo, os bancos de alimentos transformam desperdício em refeições saudáveis para quem não tem condição financeira de comprar.
Estudo recente do Movimento Todos à Mesa mostra que as doações de alimentos representam menos de 1% de tudo que é desperdiçado no Brasil e que há espaço para ampliar esse volume, passando das atuais 200 mil toneladas por ano para 600 mil. Para isso, uma série de medidas teriam de ser tomadas, entre elas destacam-se a construção de um robusto arcabouço legal que estimule as doações de alimentos e o aumento da capilaridade e ampliação da rede de distribuição.
Mudar o cenário da fome e do desperdício de alimentos no Brasil é urgente e requer que passemos a abordar os temas de maneira sistêmica e também incorporando a responsabilidade coletiva em nossas ações como indivíduos. Conscientizar as pessoas sobre a mudança de comportamento necessária e seu impacto positivo é o primeiro passo.
Nesse sentido, o Pacto Contra a Fome iniciou em setembro uma campanha nacional de conscientização sobre a perda e o desperdício de alimentos. Focado em ações práticas que podem ser implementadas no dia a dia, a campanha conta com apoio do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), WWF Brasil, ONG Banco de Alimentos, Instituto da Criança, Sesc, Mesa Brasil, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a rede de shoppings Multiplan, e pretende iniciar uma ampla discussão com a sociedade, mostrando que esse é um tema que causa impacto coletivo e, por isso, deve ser de interesse e responsabilidade de todos nós.
O desperdício tem um enorme custo para a sociedade, meio ambiente e economias globais. O impacto financeiro do desperdício na economia global é estimado em cerca de US$1 trilhão pela FAO. Além disso, entre 8% e 10% das emissões de gases de efeito estufa são oriundas da produção de alimentos não consumidos, 1/4 do suprimento de água doce é usado no plantio de alimentos que acabam no lixo e 1/3 das terras agrícolas é usada na produção de alimentos desperdiçados.
Há ainda prejuízos ao bolso dos consumidores. Cada pessoa joga fora cerca de 94 kg de alimentos por ano. Estima-se que uma família com três pessoas desperdiça anualmente o equivalente a R$1.630, ou seja, mais de um salário mínimo. Um valor relevante e que poderia ser reduzido.
Temos um ano a menos para implementar ações efetivas que contribuirão para alcançar as metas previstas nos ODS. A urgência em enfrentar esse desafio é uma constante lembrança da necessidade de ação imediata de todos para garantir um mundo sustentável. Que cada um faça hoje a sua parte para que, juntos, possamos construir um futuro melhor.