Opinião

Artigo: As estatais numa agenda de futuro

Assumir que apenas o Estado comete equívocos e, por isso, não há espaço para empresas estatais em economias diversas e complexas é se contentar com uma visão muito estreita e anacrônica da realidade

Carmem Feijó*, Fernando Teixeira**, Gustavo Silva***

Empresas estatais, ao contrário das empresas privadas, buscam objetivos múltiplos, como a criação de competências técnicas e novos mercados que beneficiam a sociedade como um todo, além da lucratividade. Por isso, necessitam de uma abordagem diferente para avaliar seu  desempenho, que leve em conta a contribuição para o sucesso de desenvolvimento em escala nacional e regional. 

Em perspectiva histórica, não faltam exemplos emblemáticos da relevância de estatais na promoção do desenvolvimento. O Istituto per la Ricostruzione Industriale (IRI), holding Company, desempenhou um papel central no "milagre econômico" da Itália durante o século 20 ao construir grande parte da infraestrutura e moldar a competitividade industrial do país nos setores de defesa e construção naval. Outro exemplo é a Pohang Iron and Steel Company (POSCO), a maior estatal da Coreia do Sul, que está consistentemente entre os 10 maiores produtores mundiais de aço e criou as bases da indústria automotiva coreana. O governo coreano investiu nessa indústria intensiva em capital e de alto risco quando nenhuma empresa do setor privado estava disposta. Nas últimas décadas, a China foi capaz de desenvolver empresas estatais que figuram entre as mais produtivas e lucrativas do mundo, apoiando indústrias avançadas e criando vínculos com empresas privadas.

Nos países centrais e nas economias emergentes, a presença do Estado em setores produtivos ainda é relevante, em especial no setor energético, que vem ganhando maior relevância no contexto de compromisso global com enfrentamento das mudanças climáticas. Durante as crises financeira internacional de 2008 e do coronavírus, os governos também lançaram mão da participação estatal no capital de empresas privadas para socorrer setores estratégicos, garantindo a sustentabilidade econômico-financeira de empresas ao longo da travessia dos momentos de maior incerteza e instabilidade financeira. Não por outra razão, no âmbito das organizações multilaterais é evidente o movimento recente de discutir de forma propositiva o papel das estatais no contexto de novas políticas industriais e descarbonização das economias, se afastando das recomendações privatizantes.

É equivocada (e ultrapassada) a ideia de que empresas estatais restringem espaços de atuação do setor privado. Os atuais desafios econômicos, sociais e ambientais demandam a existência de instrumentos e instituições com mandato público e perspectiva de longo prazo para dar suporte às agendas de transformação econômica e ecológica dos diversos países. Isso significa que, em vez de se concentrarem em emular o comportamento das empresas privadas, as estatais podem assumir maiores riscos e promover iniciativas experimentais para explorar soluções inovadoras e tecnologias revolucionárias, além de criar e formatar novos mercados, como vem sendo discutido pela professora Mariana Mazzucato. Esse mandato "paciente", aliás, tem o poder de prevenir que interesses de acionistas (shareholders), no caso de empresas com capital aberto, prevaleçam sobre os benefícios mais amplos (stakeholders). 

Nesse sentido, a discussão sobre governança de empresas estatais não pode se limitar a replicar os preceitos de governança corporativa, senão conciliá-los com objetivos e metas de desenvolvimento e redução de emissões de gases de efeito estufa, por exemplo. É fundamental que os conselhos das empresas estatais sejam representados por pessoas capacitadas e de perfil técnico condizente com o tamanho da responsabilidade, mas que também compreendam a natureza política da instituição e as responsabilidades com o acionista majoritário, a sociedade.

Certamente há exemplos diversos de estatais que foram mal geridas e/ou capturadas por interesses escusos ou de curto prazo no Brasil e no mundo, assim como há exemplos de empresas privadas mal geridas e envolvidas em escândalos de diversas proporções. No entanto, é preciso aprender com os erros em termos de escolhas e desenho de políticas, compreender razões de fracasso e sucesso e criar métricas e indicadores que permitam o acompanhamento sistemático caso a caso. Assumir que apenas o Estado comete equívocos e, por isso, não há espaço para empresas estatais em economias diversas e complexas é se contentar com uma visão muito estreita e anacrônica da realidade. 

A visão binária sobre a relação entre Estado e mercado deve ser definitivamente superada. Não há tempo para disputas etéreas diante da emergência climática e em face dos diversos desafios do século 21. É preciso trazer para o debate novas ideias sobre complementaridades e novos tipos de colaboração que distribuam ônus e bônus e gerem valor público para a sociedade. 

Professora titular da Faculdade de Economia na Universidade Federal Fluminense (UFF)*

Doutor em economia pela UFF e policy fellow do Institute for Innovation and Public Purpose, da University College London (UCL/IIPP)**

Doutorando em economia pela UFF e diretor do Instituto Ilumina***

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