Historicamente, o mais antigo espaço cultural da cidade, o Cine Brasília, localizado na entrequadra 107/108 Sul, por origem, é uma sala que promove a exibição de filmes, documentários e produções do gênero. Ao longo do tempo, porém, tem sido também palco para apresentação de outras manifestações artísticas-culturais. Com isso, deixa claro que aposta na diversidade.
Foi ali, por exemplo, que, em 23 e 24 de novembro de 1979, esteve em cartaz o histórico e inesquecível show Essa mulher, protagonizado pela eterna Elis Regina, a maior intérprete da MPB de todos os tempos. A Pimentinha encantou os espectadores, que superlotaram a plateia, ao passear por repertório que incluía clássicos da importância de As aparências enganam (Tunai e Sérgio Natureza), Basta de clamares inocência (Cartola) e O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc). Não custa lembrar que, à época, o país vivia sob o jugo da ditadura militar, e essa última canção cutucava poeticamente o regime de exceção.
No próximo fim de semana, o veterano cinema volta a deixar claro essa vocação ao acolher o Festival de Memória LGBT . O evento, gratuito, realizado com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do DF, traz filmes raros, shows, feira para impulsionar a economia e rodas de conversas sobre a temática. A ideia é criar um espaço intergeracional de intercâmbio de experiências por meio da produção artístico-cultural dos últimos anos, além de valorizar as histórias de vida como narrativas memoriais e patrimônio imaterial.
O festival trará uma década como tema para cada dia: 1970 na sexta-feira, 1980 no sábado e 1990 no domingo. Os filmes, os debates e as apresentações musicais têm como referência a década-tema do dia e os interstícios históricos, políticos, memoriais e culturais entre elas.
Sexta-feira, às 18h, haverá abertura do festival e, às 19h, a exibição do filme Ferro's Bar, dirigido por Rita Quadros, Nayla Guerra, Aline A. Assis e Fernanda Elias. O curta-metragem documental aborda o levante protagonizado por ativistas lésbicas no bar paulista, no início da década de 1980, que hoje é conhecido como o Stonewall brasileiro.
A programação conta ainda com a mesa de contação, tendo como temas o jornal alternativo Lampião de Esquina e Operação Sapatão, com mediação de Sílvia Badim, tendo como convidadas Rita Quadros e Paula Silveira-Barbosa. Às 21h, será realizada a Feira de Empreendedorismo LGBT e pocket shows com tributos à Tuca, com e Haynna e Dani Silva; e a Cássia Eller, com Anna Moura.
Para sábado, às 19h, está prevista a exibição dos filmes Cassandra Rios — A safo de Perdizes, sobre a escritora que, nos anos 1970, causou polêmicas ao abordar a homossexualidade em suas obras, sendo perseguida, sob alegação de pornografia. Na sequência, às 20h, com o tema Brasília Entendida, a mesa de contação terá mediação de Bruna Penha e participação de Melissa Navarro e Felipe Areda; e a apresentação de DJs do projeto Eixona.
Domingo, às 16h, a programação chega ao final com a exibição do filme Meu amigo Cláudia, que retrata a trajetória de Claudia Wonder (1955/2010), uma das artistas mais importante da cena underground brasileira que, nas décadas de 1980 e 1990, ficou conhecida por suas performances musicais e militância pela diversidade sexual. Já a mesa de contação discutirá aspectos das políticas públicas voltadas para as artes, com mediação de Bruna Penha, tendo Ruth Venceremos, Ludmylla Santiago e Rafael Aguiar como convidados.
Finalmente, às 18h, em pocket show, Anna Moura vai reverenciar a grande Cássia Eller, múltipla intérprete, que iniciou a carreira em Brasília, ao cumprir longa temporada no extinto Bom Demais, barzinho que existiu na 505 Norte, para depois se tornar uma das maiores intérpretes da MPB e do rock nacional.
Embora não esteja anunciado, sugiro que seja celebrada uma figura icônica do underground da capital, o produtor Oswaldo Gesner, hoje com 91 anos. Na década de 1980, ele criou e manteve com sucesso, durante alguns anos, no subsolo do Conic, a boate New Aquarius. A casa noturna promovia shows que tinham transformistas como atração. Ali se apresentou, por exemplo, Rogéria, que ficou conhecida como a travesti da família brasileira.