A despedida discreta e calculada do filósofo e poeta Antonio Cicero foi para mim um sacode na alma. Pragmático, sincero e absolutamente coerente, resolveu partir, sem avisar ninguém, exceto o companheiro de 40 anos de vida. Estava cansado de perder a batalha para o Alzheimer, de ser vencido pelo esquecimento, da ausência de palavras, pela sobreposição do vazio e pelo próprio esforço de quase lutar em vão.
Sinceramente? Admiro. Não sei se teria tamanha coragem. Talvez ele tenha conseguido também pelo distanciamento que mantinha do espiritual, o que não ocorre comigo. Vou para o extremo oposto. Mas vivo a dicotomia. A atitude de Antonio Cicero tem meu total respeito. Ainda me prendo aos preceitos religiosos que me guiam por vários caminhos da vida, talvez não tivesse a coragem dele.
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Antonio Cicero foi absolutamente coerente com o que sempre acreditou e escreveu. Não transgrediu uma linha sequer. No poema Aparências, ele afirma que: "Eu viveria tantas mortes, morreria tantas vidas, jamais me queixaria, jamais". Ele simplesmente disse "adeus" antes que a queixa se tornasse impossível de suportar. Incrível.
Afinal, fala-se tanto em livre-arbítrio que, quando um ser iluminado decide pela eutanásia, as críticas caem sobre ele e os seus, por quê? O próprio Santo Agostinho sustenta que o livre- arbítrio é o ser humano ter acesso ao poder de decisão, à possibilidade de escolher em função da sua vontade, isento de condicionamento.
A expressão "livre-arbítrio" não aparece na Bíblia, mas estudiosos das santas escrituras afirmam que está lá em várias passagens, indicando que Deus concede o poder de escolha aos humanos. E cabe a nós a decisão. A sempre decisão. Antonio Cicero, ateu convicto, levou ao pé da letra os ensinamentos.
Reservadamente, como viveu, Antonio Cícero se retirou de cena, mas não sem antes deixar mais um ensinamento: faça o que quiser, conclua como melhor lhe convier e ignore os que pensam em contrário. O que realmente importa são as pessoas que amamos e nos amam. "Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito", diz a carta de despedida dele, um poema repleto de filosofia mantendo seu estilo.
Dignidade é o que nos guia a ter uma vida orientada pela retidão. Peço a Ele apenas que me permita ter também essa força interior capaz de me sustentar até o último momento com a coerência que confio e defendo para me despedir da vida, elegantemente, como fez Antonio Cicero ainda a tempo de enviar um beijo e um abraço aos meus amados. Que o "adeus" seja sem dor nem incômodo, mas um "até breve" com o acolhimento da saudade e das lembranças boas e risonhas, como acredito que tem de ser o viver.
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