Anacleto Costa — Advogado
No curso da história, no Brasil, as pessoas com deficiência têm sido triplamente excluídas da sociedade; seja pela deficiência, seja pelo preconceito e principalmente pela pobreza. De acordo com os dados do Censo de 2022, do IBGE, temos mais de 10 mil favelas e comunidades urbanas, onde vivem 16,6 milhões de pessoas (8% da população). Os últimos dados oficiais do governo indicam: 77% dos extremamente pobres são negros, sendo 40% de mulheres negras e 37% de homens negros. Na extrema pobreza, é ainda maior a população negra. Daí, podemos caracterizar a população pobre no Brasil. Ela é em sua maioria negra.
É um enorme desafio pensar em estratégia capaz de perceber a invisibilidade contida na população negra, incluindo os residentes em comunidades e as pessoas com deficiência, na tentativa de promover igualdade social, econômica e racial. O processo de inclusão exige transformações não somente na desigualdade de renda, acesso ao trabalho e moradia digna, mas na nossa mentalidade, na busca dos meios para incluir as pessoas com deficiência utilizando políticas públicas inclusivas.
Os esclarecimentos até aqui trazidos são relevantes para contar uma vivência na qual a mãe de duas meninas gêmeas que nasceram com encefalopatia crônica da infância (ECI), comumente conhecida como paralisia cerebral, ambas com deficiência cognitiva moderada, à época com 4 anos, procurou o escritório em que trabalho no centro do Rio de Janeiro. Foi atendida por uma colega advogada que acompanhou a causa. Essa mãe teve seu pedido de concessão do benefício da prestação continuada (BPC) no INSS negado, sob a justificativa de a renda mensal familiar por pessoa superar o máximo permitido.
A família era composta pela mãe — sem condições de trabalho pela necessidade de atenção às meninas nas 24 horas do dia — e pelo pai — que trabalhava como auxiliar de depósito no Supermercado Mundial, uma das maiores varejistas da cidade, sendo que a vaga ocupada por ele no supermercado deveu-se à cota de pessoas com deficiência. A única remuneração recebida no lar era R$ 898,80 (sendo que o salário mínimo, à época, era R$ 678). Cabe esclarecer que a família era de pessoas pretas da comunidade Parque Oswaldo Cruz, em Manguinhos, na Zona Norte do Rio.
O caso foi julgado pelo Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro. Deferiu-se a concessão do benefício assistencial, reconhecendo-se a incapacidade das autoras com base no laudo pericial do médico neurocirurgião nomeado pelo juízo. Ao analisar a carência econômica, ressaltou o juiz que, à luz do presenciado pelo oficial de justiça ao verificar as condições de moradia, o padrão sócio-econômico familiar era compatível com o estado de miserabilidade. Considerou ser um grupo familiar composto por quatro pessoas (autoras e pais), sobrevivendo do salário do pai e de R$ 60 do bolsa família, pagando aluguel de R$ 250.
O curioso no caso foi o fato de a lei prever a concessão do benefício assistencial a apenas um componente da família, e o juiz, na sentença, entender aplicável um benefício de BPC para cada uma das irmãs, mesmo que ambas integrem o mesmo núcleo familiar, esclarecendo que apenas um salário mínimo à família, com escassos rendimentos e o pagamento de aluguel, seria insuficiente para retirá-la da situação de miserabilidade. O INSS não recorreu e, até hoje, ambas com 18 anos, recebem os benefícios.
Esse olhar sensível do Judiciário já vinha sendo flexibilizado, e o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), nos recursos extraordinários 567.985 e 58.0963, em julgamento de 18 de abril de 2013, declarou que o critério legal de renda per capita de um quarto do salário mínimo não pode ser considerado absoluto, devendo o real estado de miserabilidade da família ser aferido em concreto à luz das circunstâncias do caso. A jurisprudência se mantém.
Em tese, todas as pessoas são iguais, mas, na realidade e em muitos aspectos da vida cotidiana, e dado o anseio pela justiça social, ao nos depararmos com tudo o que vivem os negros de periferia, além das pessoas com deficiência, negras ou não, emerge a desigualdade, sobretudo do ponto de vista da condição e necessidade de vida. Há muito a se pensar e agir para se construir uma sociedade justa e solidária, que busque erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais. E, nesse sentido, o Judiciário tem muito a contribuir positivamente. A assistência e proteção social básica em conjunto com a distribuição de renda enriquecem a todos e à sociedade como um todo.
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