Leomar Daroncho — Procurador do Trabalho
O cavalo subiu no telhado. Não foi um gatinho, foi um equino. Um cavalo zaino, de pelagem castanho-escura, foi resgatado de cima do telhado em que esteve ilhado por quatro dias durante a trágica enchente que abateu o Rio Grande do Sul. As aflitivas imagens do resgate tornaram o animal um símbolo da tragédia ambiental e da resistência do povo gaúcho.
Enquanto isso, a Constituição Federal está completando 36 anos. Promulgada em 5 de outubro de 1988, a Carta é celebrada por reconhecer vários direitos e garantias, essenciais para o cidadão e para a sociedade. Mas há um em especial que deve ser destacado pela clareza e contundência com que foi enunciado.
A Constituição proclama que temos, todos, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225). A sadia qualidade de vida, de todos os seres humanos, é um direito que impõe ao Poder Público e à coletividade a defesa e a preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações.
A primeira referência à legislação ambiental no país deu-se, no interesse da Coroa, com o Regimento do Pau-Brasil, em 1605. As duras punições, que iam do confisco à pena de morte, não foram suficientes para proteger as florestas da sanha predatória.
Em 2024, a escalada de eventos extremos — secas, enxurradas, inundações, deslizamentos, assoreamentos de cursos d'água, nuvens de poeira, incêndios florestais, desmatamentos, pulverização de produtos extremamente tóxicos sobre povoados, campos e florestas, recordes de temperaturas e baixa umidade — demonstra as consequências da deliberada ação humana contra o meio ambiente. Por vezes, a catalogação do direito como fundamental não se mostra suficiente para impor a proteção ambiental em face de interesses imediatos concretos.
Além das investidas individuais predatórias contra o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, tem havido iniciativas legislativas que ignoram a Constituição e os compromissos do Brasil com a pauta civilizatória global representada pela Agenda 2030 da ONU.
Em 2021, a Lei nº 14.285 alterou o Código Florestal, permitindo a redução de áreas de proteção permanente nas margens de rios urbanos. A medida ameaça o meio ambiente e as pessoas, agravando os efeitos de enchentes. A lei é questionada no Supremo Tribunal Federal (ADI 7146) por ferir o regime constitucional de repartição de competências. Leis ambientais de municípios e estados somente poderiam aumentar o rigor das normas nacionais, jamais reduzi-lo.
Em 2022, a Lei nº 14.515/22 autoriza que empresas do setor agropecuário criem o próprio programa de defesa sanitária, atividade em que o Brasil era referência mundial. A lei investe contra o Estado e o poder de polícia nos temas ambientais e de saúde pública, jogando contra a credibilidade da produção brasileira na disputa por mercados mais exigentes. Por atribuir aos trabalhadores das indústrias e estabelecimentos agropecuários a responsabilidade de fiscalizar, aferir e certificar a salubridade de produtos e procedimentos do processo produtivo, reduzindo a participação do Estado, a lei está sendo questionada no STF (ADI 7351).
Em 2023, a Lei nº 14.785 alterou a regulação para aprovação, comercialização e uso de agrotóxicos. A lei que facilita o uso de produtos extremamente tóxicos, ignorando o alerta de cientistas e de instituições, nacionais e internacionais, para as consequências arrasadoras na saúde e no meio ambiente está sendo questionada no STF (ADI 7701). O tema do estímulo aos agrotóxicos, por meio da concessão de isenções tributárias, também é objeto de questionamento no STF (ADI 5553).
Em meio à fumaça, o inusitado pedido de ministros do governo brasileiro à União Europeia de adiamento da norma que exige commodities livres de desmatamento expõe a preocupação com as consequências do descaso com os compromissos ambientais. Certamente, depõe contra a pretensão brasileira de ser reconhecido como líder na pauta climática.
A anedota do gato no telhado retrata o raciocínio que ameniza a péssima notícia, homeopaticamente dosada: subiu, escorregou, caiu e, infelizmente, morreu. No Brasil de 2024, quem subiu foi um cavalo.
O histórico recente do STF é de sintonia com a pauta que envolve a adoção de medidas ousadas, abrangentes e essenciais para promover o Estado de Direito, os direitos humanos e a responsividade das instituições políticas. Assim, tem freado as investidas predatórias. A Corte está sendo convocada a concretizar o compromisso do Estado brasileiro com a Agenda 2030.
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