Artigo

A criminalização de uma etnia

A criminalização da maconha não é, nem nunca foi, um ato pensando no bem coletivo e, sim, no preconceito étnico e controle financeiro

Uruguai e México: Em dezembro de 2013, o Uruguai se tornou a primeira nação do mundo a autorizar o cultivo, distribuição e consumo da maconha. -  (crédito: Alissa De Leva por Pixabay )
Uruguai e México: Em dezembro de 2013, o Uruguai se tornou a primeira nação do mundo a autorizar o cultivo, distribuição e consumo da maconha. - (crédito: Alissa De Leva por Pixabay )

» Zé Irineu Filho, Escritor

Na moral? Eu aposto um bom dinheiro que papo de 70% dos brasileiros não têm a menor ideia do que a palavra descriminalizar significa, e isso me desanima a escrever. Esse bom dinheiro é uma aposta contrária ao meu ofício de apostador e escritor, e minha segurança nesse palpite é que eu faço parte desses 70%.

Essa discussão, completamente ineficaz, começou no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, mesmo período em que eu comecei a compreender melhor a relação entre cannabis e o povo negro. Como a maioria dos brasileiros, aprendi, desde muito cedo, que a cannabis era uma planta com uma grande capacidade destrutiva e que o seu consumo fatalmente levaria um indivíduo a um processo destrutivo, afetando familiares e pessoas amadas.

Como toda substância que altera a consciência, a cannabis carrega um risco. Risco esse que vim a descobrir ser muito menor do que duas drogas legalizadas, o tabaco e o álcool. Lendo sobre, também descobri a respeito de seu enorme potencial medicinal. Alguns países discutiam a legalização, e as pesquisas começaram a ser feitas nessa direção. Em especial, doenças degenerativas do cérebro, como Alzheimer e Parkinson, além do TDAH e transtorno de estresse pós-traumático, duas condições que carrego, sendo o TEPT a mais recente.

Nessa pesquisa, eu me interessei também pelo fator cultural, da música com bandas como Planet Hemp. Indo para religião rastafari, a cannabis é o centro, a planta que une com a arte, ou religa com o divino. Deixando de lado o consumo da flor, a cannabis tem outra propriedade importante, o comércio. Suas fibras são úteis para diversas finalidades: tecido, materiais têxteis, papel e até, pasmem, combustível. Quanto mais eu lia sobre o assunto, menos eu entendia como o plantio e a pesquisa sobre uma planta com tantas propriedades poderia ser crime para uma sociedade.

Os negros recém-libertos no Brasil encontraram na cannabis uma ferramenta importante em cerimônias religiosas. Nos Estados Unidos, o uso era feito por mexicanos e negros. Foi um pulo para associação com crimes, vadiagem e até estupros por essas etnias.

Outro fator importante na proibição é o potencial medicinal. Enquanto a maioria dos remédios precisa de um processo intenso de manufatura, a cannabis tem um potencial grande de conhecimento. A grosso modo, qualquer um pode plantar no seu quintal e fazer os processos de manufatura para criar tintura ou óleo. A criminalização não é, nem nunca foi, um ato pensando no bem coletivo e, sim, no preconceito étnico e controle financeiro.

Em carta ao Congresso Científico Pan-Americano em 1915, o médico e político brasileiro Rodrigues Dória sentenciou: "O ato de fumar maconha é uma espécie de vingança de negros selvagens contra brancos civilizados, que os haviam escravizado." Eis o nível dos argumentos anticanábicos que foram surgindo e se consolidando até a sua criminalização total.

Atualmente, a população carcerária no Brasil, a terceira maior do mundo, é composta principalmente por jovens negros portando cannabis sob a acusação de tráfico. Estudos do sistema penal brasileiro apontam o fato estapafúrdio de que 70% dessa massa de presos são negros. Ser preso como traficante é muito mais fácil se você for negro e periférico.

O Brasil é um país com uma política definida de prender negro. Bastaram 40 minutos assistindo a uma matéria no Canal 247 com a Rachel Quintiliano e o Guilherme Paladino e mais uns 15 minutos de Foro de Teresina da Piauí para entender que a PEC das Drogas vai passar e tudo o que vai acontecer é a prisão de mais negros, com a concretização, na sequência, da privatização do sistema carcerário. 

Eu acho que não precisa ser um gênio da política, nem fumar maconha. Na real, não precisa de muito para entender que isso vai acontecer, está acontecendo, já aconteceu. A discussão não é, nem nunca foi, sobre como reparar a escravização do povo africano. A discussão continua sendo sobre como continuar nos explorando e nos matando. A polícia continua a serviço da burguesia. 

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postado em 01/10/2024 06:00
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