Opinião

Marisa, Tony, Denise, Coy e Humberto

Entre fazer o perfeito e o possível, sempre vou preferir a segunda opção. Temos de fazer o que precisa ser feito; escrever do jeito que dá; demonstrar carinho como pudermos

Pensei em não escrever nada nesta semana. A ressaca do último artigo foi tão forte que me calou a voz. Os arquivos secretos da memória podem ser confortáveis até que as gavetas enchem e a gente precisa esvaziar. Foi o que fiz, e aí fiquei sem ideia até me lembrar de uma entrevista de Marisa Monte em que citava um ensinamento das bordadeiras: "Não dá pra brigar com a linha, minha filha". Não dá para brigar com a palavra, que sempre pede para sair em algum momento. 

Então li a matéria da Nahima Maciel no Correio sobre a peça encenada por Denise Fraga e Tony Ramos, O que só sabemos juntos, uma impactante reflexão sobre o diálogo e a troca. Corri para o teatro. E ele me mostrou a força da palavra dita e, encenada, melhor ainda. Ali na plateia, ficamos todos cara a cara com as dúvidas e escolhas de um dia a dia que abre nossos olhos para realidades que teimamos em não ver. 

E não ver pode ser um privilégio escolhido por quem enxerga de forma perfeita, mas teima em não abrir os olhos. Por outro lado — e olha que coisa bonita —, quem pouco enxerga ou não enxerga nada pode ver tão além... Minha amiga Coy, do Rio, tem 93 anos, está com dificuldades de enxergar. Mas, com a sabedoria de quem sabe o valor das coisas e do tempo, avisou-me que escreveu uma carta pra mim com a letra possível e colocou no correio. 

A expressão "a letra possível" bateu em mim de um jeito muito especial. Entre fazer o perfeito e o possível, sempre vou preferir a segunda opção. Temos de fazer o que precisa ser feito; escrever do jeito que dá; demonstrar carinho como pudermos; encontrar nossas pessoas de afeto nem que seja por 15 minutos para um café no meio do dia; achar alegria em cada cantinho possível, apesar dos dissabores do mundo. 

Humberto Junqueira, cartunista tão querido por aqui, que por anos nos encantou com o personagem Eixinho, ficou cego, mas encontrou por meio da inteligência artificial um meio de voltar a contar suas histórias. Com a tecnologia possível, com o traço possível. O movimento dele nos fala sobre as possibilidades que aparecem com o tempo e sobre o encanto que é "não brigar com a linha", se ela conta sua história e honra sua vocação.

Então aqui estou novamente, chegando no teu domingo, para dizer simplesmente: encontre possibilidades para continuar sempre. E, mais do que ler este meu texto com carinha de autoajuda, vá ao teatro. Lá você encontra repertório até para mudar sua linha ou para voltar a reconhecê-la.  

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