Opinião

Tintas de diversidade

O "pretagonismo" — como bem nomeou o talentosíssimo e premiado Ailton Graça — é, portanto, uma questão de justiça social e uma forma de corrigir um desequilíbrio que persiste há décadas

A televisão brasileira não tem mais espaço para" homem hétero e branco". Essa é a opinião de Thiago Fragoso, uma figura notória pelas atuações em novelas. A queixa do artista — concedida por meio de uma entrevista à Folha de S. Paulo no início do mês e que ele alega ter sido retirada do contexto — encontra origem no recente movimento do audiovisual no país de posicionar profissionais negros nos papéis principais das produções. E, obviamente, gerou repercussão negativa nos meios de comunicação. Afinal, louro de olhos azuis, o galã de inúmeras produções da Globo dos últimos 20 anos, com seu desconforto por não estar mais na mira dos autores e diretores, demonstrou estar na contramão de uma reparação histórica mais do que necessária e tardia.

O ano era 1984. Em uma novela das oito da Globo chamada Corpo a corpo, de Gilberto Braga (1945-2021), a atriz Zezé Motta vivia Sônia, uma paisagista que se envolvia com um playboy interpretado por um dos galãs da época, Marcos Paulo. O romance, entretanto, foi duramente condenado pelo tribunal do sofá. A sociedade julgou como vergonhosa a imagem de um branco com ares hollywoodianos aos beijos com uma mulher preta. Vinte anos depois, isso, enfim, mudou. Taís Araújo foi a primeira negra escalada para protagonizar uma novela da emissora, tendo como par romântico o então galã maior da época, Reynaldo Gianechinni. Um avanço significativo, mas repleto de estereótipos nos nomes da personagem (Preta) e da novela (Da cor do pecado) — que remete à hipersexualização do corpo negro.

Os tempos, agora, são outros. Após 40 anos do racismo escancarado sobre Zezé Motta, o cenário das novelas brasileiras tem refletido a representatividade em um país onde a população negra representa cerca de 56% dos habitantes, segundo o IBGE. Essa realidade demanda que a televisão, que atinge milhões de lares brasileiros, se alinhe mais fielmente à diversidade da nossa sociedade.

Afinal, historicamente, as narrativas em novelas têm sido predominantemente brancas, perpetuando estigmas e relegando personagens negros ao secundário ou caricatural. Essa invisibilidade empobrece as narrativas e enriquece preconceitos que limitam o reconhecimento do valor cultural que a população negra traz. Chega a ser cruel que sejam entregues a artistas pretos os arquétipos de pobreza, servidão e criminalidade.

O "pretagonismo" — como bem nomeou o talentosíssimo e premiado Ailton Graça — é, portanto, uma questão de justiça social e uma forma de corrigir um desequilíbrio que persiste há décadas. As redes sociais têm desempenhado um papel crucial nesse processo, permitindo que o público se manifeste e exija mudanças. Contudo, é importante que essa transformação não seja apenas uma resposta a um clamor inflamado, mas uma mudança estrutural na forma como as histórias são contadas — e é importante que quem as conta também sejam os negros. O futuro das telenovelas merece ser escrito com tintas de diversidade que refletem a genuína riqueza de um Brasil plural.

 

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