Opinião

Visão do Correio: É preciso apostar na saúde mental

Há uma mobilização grande em torno dos ganhos e perdas das apostas on-line nos campos políticos e econômicos. Falta uma investida maior sobre os possíveis desdobramentos para a saúde mental.

Nas reuniões de dependentes anônimos, a frase "Só por hoje" costuma ser um poderoso compromisso diário de autodisciplina e busca pela saúde. Um lema antigo para quem luta contra transtornos que destroem vidas e que, no Brasil, ganha um adversário onipresente: os jogos de apostas on-line. Especialistas alertam que o país enfrenta uma pandemia de dependência em jogos com o avanço descontrolado de plataformas que oferecem as chamadas bets. Há uma mobilização grande em torno dos ganhos e perdas desse tipo de atividade nos campos políticos e econômicos. Falta uma investida maior sobre os possíveis desdobramentos para a saúde mental.

O problema é de fato desafiante. Profissionais da área reconhecem que até mesmo os protocolos de tratamento precisam ser readequados. Segundo a psiquiatra e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB) Helena Moura, diferentemente de idosos e homens mais impulsivos, perfis de dependentes de jogos tradicionais, ela tem atendido jovens, muito deles universitários, sem comorbidades prévia, como ansiedade e alcoolismo, que "começam por brincadeira e, quando percebem, estão com uma dívida enorme".

Professores têm relatado o aumento de alunos fazendo apostas em sala de aula, usando, inclusive, dinheiro do Pé de Meia, programa recém-criado pelo governo federal para apoiar financeiramente estudantes do ensino médio, nas investidas on-line. Há de se investigar os relatos, mas também adotar estratégias que não sejam apenas punitivas. Apostar no caráter preventivo e educativo para preservar a saúde mental é o caminho. Ainda que não seja o objetivo principal, a intenção do governo, anunciada na sexta-feira, de proibir o uso de celulares em escolas públicas e privadas pode ajudar nesse sentido. 

Segundo Helena Moura, políticas públicas que restrinjam o acesso às bets tendem a amenizar duas características que favorecem a dependência: o acesso simples — 88% dos brasileiros têm um celular, segundo o IBGE — e de fácil disfarce — é também por meio desses aparelhos que se desenrola boa parte dos compromissos cotidianos. Da mesma forma, a possibilidade de punição a fabricantes de celulares que estão produzindo aparelhos já com aplicativos de apostas instalados pode ser eficaz. Oito empresas foram notificadas na semana passada pela Secretaria Nacional do Consumidor e têm 10 dias para se explicar. 

Falta, porém, uma reação estruturada do Ministério da Saúde para o enfrentamento das roletas virtuais.  Além do risco do agravamento da desnutrição e de outras mazelas — beneficiários de outros programas do governo, como o Bolsa Família, também caíram nas armadilhas das apostas on-line —, há as questões psicossociais. A taxa de suicídio entre dependentes em jogos é de 15%, e 80% deles, em algum momento, tiveram ideação suicida.

Medidas em análise, como a produção de relatórios regulares indicando apostadores compulsivos e a adoção de uma pausa obrigatória nos momentos de crise, não parecem suficientes considerando a facilidade com que se pode trocar de aparelho eletrônico e de perfil do usuário. Além disso, quais suportes serão oferecidos depois que a pessoa com o transtorno for identificada? Estudos mostram que as reuniões de dependentes anônimos funcionam porque facilitam mudanças sociais adaptativas e da abstinência. Essa é uma perspectiva a ser considerada na resposta do governo, que, no caso da saúde mental, parece estar sendo construída em velocidade analógica.

 

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