*Cátia Maringolo
Conheço o escritor mineiro Marcos Fábio de Faria primeiro por uma imagem: a de seu já famoso e reconhecido Madame Satã, dramaturgia escrita com o autor Rodrigo Jerônimo e sucesso teatral brasileiro. Agora, sou apresentada a seu livro A casa fechada, que, em poucas palavras, diz desse momento que vivemos juntas e juntos, no tempo e espaço em que estivemos, por algum arranjo do universo e das deusas que nos governam.
O livro nos remete quase que automaticamente a uma sensação ainda tão presente no nosso imaginário e uma certa nova sociabilidade comum, de termos nos trancado em nossas casas — na sua mais diversa organização arquitetônica — com a premissa de preservamos a vida, ou de adiarmos uma morte.
Para além de ser sobre casas, janelas, portas, portões e uma vida fechada, esse livro nos faz rememorar a experiência da covid-19 nos cantos de nossos corpos, que ainda parecem estar cheios de cicatrizes. Quando iniciamos a leitura de suas crônicas — o que, para mim, mobiliza a percepção de uma janela, uma fresta do/para o cotidiano —, nos chama a atenção a quantidade de sensações, sons, de barulhos evocados habilmente por Faria. Estamos com o autor também fechados e fechadas em sua/nossa casa e percebemos que, da janela, observamos o tempo correr, lento, ralo, um tempo que se arrasta.
A passagem, ou não, do tempo é também um crescendo do pavor que se instala ao percebermos que o fechamento para o mundo parece não ter prazo para acabar. O medo da pandemia e do vírus parece estar em sintonia com a falta de informação e a desinformação. Uma amiga uma vez me disse, durante a pandemia, que sentia que a condição de lock down era semelhante à notícia de um tigre solto pela cidade, mas impossível de ser apanhado, quase que como uma ameaça invisível, etérea.
Essa sensação de um medo que não podemos segurar com as mãos, ou sentir, está impregnada na costura narrativa de Faria, que é, primeiro, anunciada não apenas pelo trancamento de portas e janelas, como de nossas vidas, mas pela insistência com nossos sapatos: "É certo que haverá memória do choro, e mais ainda do primeiro de todos, mas sem garantias de que sobrará tempo, ou lágrimas, até o fim da peste. E que não chegue o dia em que há de se colocar a mesa com indiferença e se sentar, mastigar e engolir. Apenas seguindo o dia-após-dia numa rotina tão seca e que repousa no corpo sem mais. Além, é claro, da preocupação em deixar os sapatos para sempre na entrada."
O medo, que existe em condição interseccional no mundo, é complexificado por questões como raça, gênero, classe, localidade, geografia — " (...) existe a exceção, já que a terra não divide quem fica ou não doente. Mas quem nela permanece é um resultado do lugar de nascimento. É o mesmo desde sempre, como tem mostrado, também as poesias" — e coexiste com a beleza surpreendente que descobrimos com o pôr do sol, das folhas que caem das árvores, dos uivos dos cachorros ou mesmo das palmas celebrantes: por alguns instantes, estamos com o autor dentro de sua casa esperando que a peste acabe. Por isso, ainda nos choca saber do descaso de nossos governantes, ou do sofrimento dos mais pobres e vulneráveis, "os números varridos para baixo do tapete".
Conforme avançamos na saga pela luta à sobrevivência, mais escancarados são as desigualdades, as opressões, o racismo, a necropolítica. A falta de ar, síntese e metáfora da pandemia e da diáspora negra, expõe as vulnerabilidades históricas a que a população negra, pobre está submetida.
A casa fechada traz essas pequenas frestas que se abrem para dentro, em um cotidiano de isolamento, e que insistem em abrir para fora, para o mundo. São um convite para reelaborar e ressignificar essa experiência comum e distinta de tempos recentes de pandemia. Por meio de uma costura poética, Faria dá forma em palavras ao isolamento com máscaras, álcool em gel, acompanhados de nossas plantas e nossos bichinhos de estimação, ao pavor da morte, ao fanatismo da ignorância, da falta de ar e do terror de não termos uma casa onde possamos fechar nossa mortalidade.
O ato de fechar a casa, que se tornou um sintoma do medo da contaminação e da morte, é sintomático de uma sociedade que concebe tantas pessoas em situação de extrema de miséria e pobreza, e sem uma casa para se "esconder até que esse tigre invisível seja finalmente capturado".
*Tradutora, educadora, doutora em estudos literários. Atualmente, coordenadora-geraldo gabinete da ministra de Estado da Cultura