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Artigo: Não olhe para o horizonte

Ao se olhar para baixo, os raios de sol que atravessam a fumaça iluminam congestionamentos e calçadas quebradas. Talvez, se entenda que é mais prático fugir do apocalipse climático de carro. Mas é o uso intensivo do carro que nos leva para lá

*Renata Florentino

Nos últimos dias, o Distrito Federal contou com novos elementos em seu celebrado horizonte. Do céu azul à Torre Digital, ou do Hospital das Forças Armadas (HFA) ao edifício do Buriti, fumaças em diversos tons de cinza deixaram a população preocupada. Se a fumaça de 25 de agosto veio de outros estados, agora foi uma produção local que disparou os medidores da qualidade do ar.

Ao olhar para baixo, cidadãos e servidores à espera de direcionamento do poder público. O que  foi comunicado: "Cada um avalie melhor por aí o que fazer!". O que é uma característica singular do GDF e uma facilidade em termos de governança — a junção da autoridade municipal com a estadual, sem a chance da contradição entre gestores de entes federados diferentes — em vez de gerar um comando assertivo, claro, planejado, mostrou-se um vácuo de direcionamento. Faltou alerta de evacuação para áreas específicas, faltou release e memorando SEI, faltou coletiva de imprensa. Tudo decorrente de uma ausência ainda maior: um protocolo de ação, um plano de adaptação climática.

Não dar a importância devida às queimadas, como se fossem apenas "mais uma", é banalizar o que na verdade precisa ser enfrentado. Focos de incêndio criminosos devem ser investigados com rigor. A serviço de quem estavam? Cada desconhecido apanhado pela polícia agiu sob iluminação e orientação própria? O que ganhariam colocando foco no Cerrado de Brasília? Talvez, a polícia ainda não saiba o que eles ganhariam e o que foi prometido a eles. Mas já sabemos o que todos nós perderíamos com a continuidade das queimadas.

As condições climáticas são a base do nosso modo de vida, dos padrões de produção e consumo, do cultivo e preparo de alimentos. Mudar nossas condições climáticas — no caso, agravando nosso período de estiagem — é piorar nossa condição de vida. A provisão de água potável, a produção da agricultura local, as condições de habitabilidade de bairros inteiros estão sob ameaça pela falta de efetividade da ação pública.

Em vez de gestores escolares tomarem decisões no calor, literal e seco, dos acontecimentos, quando a Secretaria de Educação vai finalmente reconhecer que o recesso do meio do ano deve ser transferido para agosto/setembro, meses de condições climáticas mais adversas na capital? O berço das águas, no mês em que se celebra o dia do Cerrado, a capital da República, no mês em que se celebra o nascimento de Juscelino Kubitschek, parece não estar antenado com as necessidades e responsabilidades atuais. Não se evacuou nenhuma área, mas, também, para onde levar as crianças, idosos e pessoas com problemas respiratórios do DF?

E como levar? Ao se olhar para baixo, os raios de sol que atravessam a fumaça iluminam congestionamentos e calçadas quebradas. Os dados do Inventário de Gases de Efeito Estufa do DF mostram o grande peso que o deslocamento rodoviário tem em nossas emissões de CO² e equivalentes. A perda de passageiros do transporte coletivo para o transporte individual, que era uma tendência, se agravou com a pandemia. Para atrair passageiros para o transporte coletivo, o que foi proposto ou feito? A demora em renovar a frota de ônibus das empresas? A ameaça de reter créditos dos cartões dos passageiros? A restrição para pagamento em dinheiro?

Talvez se entenda que é mais prático fugir do apocalipse climático de carro. Mas é o uso intensivo do carro que nos leva para lá. O incentivo irresponsável ao transporte individual motorizado, somado aos incêndios criminosos, transformaram a capital do país num cenário de Mad Max que não faz jus ao território que poderia ser exemplo de políticas públicas para o restante do país.

Um território pequeno, um ente que recebe mais aportes de orçamento público por habitante que qualquer outro, tem a obrigação moral de ser um celeiro de boas ideias e inovações. Os brasileiros deveriam olhar para Brasília como uma referência, uma inspiração. É para isso que a capital foi feita. As ruas abertas, as ruas do lazer, que tanto contribuíram mundo afora para a retomada dos espaços públicos na pandemia, têm na Ciclovia Recreativa de Bogotá e no Eixão do Lazer suas inspirações. Em vez de se valorizar e expandir a ideia para outras cidades do DF, o Eixão do Lazer se encontra sob ameaça. 

A periferia metropolitana de Brasília já avançou na oferta de transporte coletivo com tarifa zero para as populações de Formosa e Luziânia. Brasília continuará vivendo do orçamento federal e de seu passado ou mostrará para sua população e o restante do país que pode ainda inovar e ser referência de imaginação e pioneirismo nas políticas públicas? A qualidade e efetividade do nosso Plano de Adaptação Climática é que responderá a essa questão. Enquanto a chuva não vem, essa deve ser nossa agenda prioritária.

 *Doutora em ciências sociais pela Unicamp. Foi coordenadora da ONG Rdas da Paz e diretora de estudos ambientais e territoriais do IPEDF-Codeplan

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