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Artigo: Ponto sem retorno

É preciso dizer para que nos preparemos, pois centenas de milhões, bilhões de vidas dependem disso.Brasileiros estão morrendo sufocados. O SUS já sente os efeitos

*Marcelo Coutinho

Pontos de não retorno são limiares de destruição do meio ambiente depois dos quais não há como voltar atrás e, assim, um futuro de tragédias se torna inevitável. A degradação do clima com as emissões de carbono chegou a um tal nível no mundo, hoje, que não é mais possível salvar ecossistemas inteiros. As mudanças climáticas não podem mais ser paradas e, por causa disso, o futuro da humanidade é mesmo sinistro, especialmente em países como o Brasil. Está vindo tudo rápido demais, muito mais rápido do que os cientistas calcularam. Preparem, então, os seus próximos anos. Estejam prontos o quanto puderem para o que está por vir.

A Amazônia passou do ponto de retorno. O Pantanal passou do ponto de retorno. O degelo no Ártico e Antártida passou do ponto de retorno. O calor dos oceanos passou do ponto de retorno, ainda mais o Atlântico Norte. Em meados deste século, não haverá mais Amazônia, nem Pantanal. Nem geleira em diferentes áreas da Antártica, talvez nela inteira. Nem na Groelândia e no solo congelado do Ártico. Caos, sim, aterrorizante. Antes tudo isso fosse sensacionalismo, mas, infelizmente, é preciso dizer, agora, que chegamos a esse ponto sem retorno. É preciso dizer para que nos preparemos, pois centenas de milhões, bilhões de vidas dependem disso. Brasileiros estão morrendo sufocados. O SUS já sente os efeitos.

Carvão, petróleo, gás natural e biocombustíveis são os quatro cavaleiros do apocalipse. E ao contrário da Bíblia, entre esses quatro não há nenhum deles que seja o nosso redentor. Estão destruindo o clima, manchando a atmosfera e fervendo as águas. Lua de sangue com tanta fumaça que sobe das queimadas. Sol em brasa com a taça da ganância derramada sobre ele. Os donos do poder, sobretudo dos últimos 20 anos, foram muito, muito irresponsáveis. Entregaram-se aos demônios completamente. Como maníacos possuídos ignoraram o que a ciência alertava, sempre querendo mais e mais, mais e mais. Agora, o inferno começou a subir para a Terra com um calor mortal, e não há mais como evitar um encadeamento tenebroso de eventos extremos — daqueles de filme de ficção científica.

Somos testemunhas oculares do fim do mundo como o conhecíamos. Algo deveria ter sido feito desde o Acordo de Paris de 2015. Daria tempo. Não foi, nada fizeram de verdade. Algo pelo menos deveria ter sido feito nos últimos dois anos com a iminência mais clara ainda de chegarmos aos 1,5°C. Não foi feito. Nesse período, batemos mais recordes de poluição, um atrás do outro, passamos dos 40 bilhões de toneladas de carbono lançadas no ar. E, agora, em 2024, devemos chegar a 44 bilhões. Uma verdeira insanidade coletiva, que me leva a concluir que passamos do ponto de retorno. Eles continuarão abrindo poços de petróleo, continuarão usando carvão. Eles continuarão dizendo que gás natural e biocombustíveis são transição energética. Mentira, demônios!

A Petrobras diz e repete que planeja chegar ao seu apogeu de produção de petróleo em 2030, e só em 2040, espera talvez — caindo finalmente na curva — chegar de novo aos níveis atuais de produção elevadíssimos. Ou seja, não tem jeito. Acabou. Era para estarmos diminuindo a produção dos combustíveis fósseis no mundo todo há anos, e o contrário disso acontece. Mas essa dura verdade não significa que devamos desistir. Ao contrário. As pressões por uma transição verdadeira devem se tornar de agora em diante asfixiantes para esses cavaleiros infernais. Se alguém ainda tem algum juízo no poder público, chegou a hora de mostrar-se, obrigando essa transição na marra, e não adulando usineiro que desmata e põe em chamas metade do país. O agronegócio com os biocombustíveis virou a besta que nasce daTerra. Enquanto a Petrobras é a besta que nasce do mar, e na Foz do Amazonas.

Cada país tem as suas bestas, e elas emergem cada vez mais fortes. Não é possível mais evitar os eventos extremos do aquecimento global e mortes em massa, de fazer o Holocausto virar uma fração do eclipse final, mas ainda é possível manter algo de civilizado na humanidade. Algo do Brasil pode restar, sobreviver. Temos que transitar rápidamente para os carros elétricos, para o aço e o cimento verde, para o hidrogênio verde, para as eólicas e solares. Se querem preservar seus veículos de combustão, que capturem carbono do ar e o misturem com H2V, produzindo os sintéticos. Agora! Não no ano que vem. Agora! Se querem continuar expandindo a fronteira agrícola, que usem, então, fertilizante com amônia verde e parem de acelerar a decadência florestal. As soluções estão aí, e passam também por começar a recuar as cidades costeiras. Tudo isso sai muito mais barato do que o Armagedon, pode ter certeza.

*Professor da UFRJ, especialista em hidrogênio verde

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