ANDRÉ ROYES SPIES — Subprocurador-Geral do Trabalho mestre e doutor em direito
A Fundação Getulio Vargas (FGV) lançou outro estudo sobre o mercado de trabalho dedicado, agora, à condição dos trabalhadores por conta própria. Detalhada, chama atenção na pesquisa uma resposta recorrente (duas em cada três) dos entrevistados ditos autônomos: gostariam de ter um trabalho com carteira assinada.
O dado é revelador de um desassossego no seio desse contingente contabilizado pelo IBGE em 25,41 milhões. Naturalmente, análises conclusivas desse patamar de descontentes (cujo percentual sobe para 75,6% na faixa até 1 salário mínimo) dependerão do enfoque dado pelo intérprete, assim como de seus vieses cognitivos.
Quanto a esses, nossa posição é crítica à desregulamentação excessiva do mercado, seja por razões de ordem prática (a tendência para a informalidade é imensa), seja porque a segurança jurídica sai enfraquecida do processo disruptivo que temos assistido — afinal, a lei prevê o standard do contrato de emprego e todo um aparato fiscalizatório.
Esse genuíno desalento dos empresários de si mesmos com o fato de que o empreendedorismo não é uma panaceia, mas muito vocação (e engenharia social), suscita mesmo reflexões de toda ordem: sobre soberania, política de empregabilidade oficial ou a propósito do porvir e aonde chegaremos pela mão invisível do mercado etc.
É de Rui Barbosa a retórica de que a soberania do povo é o alfa e o ômega, o princípio e o fim. Logo, seria de esperar que políticas públicas restem articuladas tendo em vista as necessidades do tecido social. Todavia, há grande ceticismo, como sustenta o jurista José Afonso da Silva: o Estado brasileiro seria incapaz de formular políticas públicas, devido a sua privatização por grupos sociais determinados, e ao sistema de representação congressual que transforma os legisladores em agenciadores de verbas públicas, sustenta.
Ariano Suassuna, em sua saga que emocionou plateias com os causos do brasileiro comum, não cansava de adaptar a tese machadiana de que existiriam dois Brasis: o país real, bom e revelador de ótimos instintos, e o país oficial, com algo de burlesco e caricato. Para o poeta paraibano, a elite necessitaria olhar mais para o povo e governar para o conjunto da população.
Na era da sociedade empresarial (Foucault), que administra capitais humanos, ou nestes tempos de desempenho e cansaço (Byung Chul Han), dificilmente emplacará bem no Brasil o mero traslado das políticas de flexsecurity dos países centrais, onde já existiu a experiência welfare state e se conhece bem a importância dos chamados amortecedores sociais.
Entrementes, o que se descortina no porvir é a senescência dos modelos retributivos baseados na valorização do tempo de trabalho, do trabalho mesmo enquanto pilar do desenvolvimento da personalidade, e marca de identidade e posição social. Corolário, o emergir de formas de organização do trabalho calcadas em uma decantada liberdade para capitais humanos supostamente florescerem, recompensados os sujeitos mais flexíveis e adaptados à nova ordem. É como diz o professor José Dari Krein, em entrevista que repercutiu a pesquisa na mídia: nesse incentivo à individualização e competição, algumas pessoas vão se dar bem, mas a maioria, não.
Outro achado foi que 74,6% dos autônomos não têm vínculo formal com o Estado. Ora, se os por conta própria formam o segmento que mais cresceu entre 2012 e 2024 (25,9%), não é difícil imaginar de um lado o passivo social que vai sendo gestado até que milhões sem CNPJ (18,95) alcancem padrões etários da aposentação e, de outro, o gap fiscal fruto da informalização acelerada em curso.
Também merece registro que grande parte dos trabalhadores autônomos brasileiros tem entre 45 e 65 anos, representando 38% do total. Esse perfil pode ter pesado para um desencanto maior com a liberdade, por um afeto nostálgico para com um mercado diferente, próprio do mundo mais lento do passado. Provável que as novas gerações, nativas da internet, lidem melhor com o novo ritmo. Por outro lado, um novo estudo do IBRE sobre as MEI seria bem-vindo, para fins de modulação das políticas públicas de combate à informalidade.
O professor Marcio Alves da Fonseca comentou a frase: "O Brasil não tem povo, só público". Povo, aqui, tomado como mero espectador da vida política e social. Trata-se, na verdade, do Brasil real, que se ressente da CLT e de mais estabilidade para tocar a vida. Tal como o cavaleiro do sertão, Ariano, não podemos perdê-lo de vista, até porque o preço dessa indiferença costuma ter viés de alta.