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Incêndios na Amazônia e regularização fundiária

A tragédia dos comuns explica bem a situação atual das áreas de floresta que ainda estão como terras devolutas, ou seja, as áreas públicas que pertencem ao Estado, mas que não têm uma destinação pública definida

IGOR DE ARAGÃO — Bacharel em direito  (UFRJ) e em geografia (USP), doutorando em direito (FGV/RJ) e consultor legislativo no Senado Federal

Em julho de 2024, o número de incêndios florestais na Amazônia foi o maior para o mês desde 2005, tendo sido registrados mais de 11 mil focos, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Além disso, ao longo da última década, o Brasil elegeu governos com diferentes visões e projetos para o país. Mesmo assim, algo permaneceu alarmante e, em muitos casos, até se agravou: a tendência de aumento do desmatamento, ainda que com pequenas variações anuais.

A perda de cobertura florestal, como todo problema complexo, não tem uma única solução. Mesmo assim, há muitas políticas públicas capazes de mitigar o desmatamento não controlado e não planejado e que, uma vez adequadamente adotadas pelo poder público, têm a capacidade de alterar a trajetória atual. Entre elas, uma se destaca por sua importância, embora não esteja recebendo a devida atenção: a regularização fundiária em áreas de floresta pública.

Em 1968, Garrett Hardin publicou artigo seminal disseminando o conceito de "tragédia dos comuns". Segundo o autor, a disponibilidade de um bem comum e de livre acesso leva à sua superexploração, resultando em degradação ambiental. Como não há proprietário, ninguém é responsável pela sua conservação e ninguém assume os custos decorrentes da sua deterioração.

O exemplo clássico apresentado no texto original é o de um pasto de uso comum e, por isso, acessível a todos. Nessa situação, cada indivíduo tende a colocar o maior número possível de cabeças de gado na área compartilhada, visando maximizar seus ganhos e aumentar seu bem-estar imediato, o que inevitavelmente levará à superexploração e, a longo prazo, à degradação do pasto.

Também é bom lembrar que, por ser uma área de uso comum, o pecuarista sabe que ele não poderá proibir que outros utilizem aquele pasto. Ou seja, ainda que ele adote uma postura mais cautelosa, não há qualquer garantia que os outros farão o mesmo. Assim, a competição é permanente e a utilização máxima é a estratégia preferida por todos.

Para enfrentar esta situação, Hardin entende que a melhor alternativa seria a demarcação e a definição da propriedade de cada indivíduo. Assim, cada um tomará decisões mais racionais, uma vez que os custos pela deterioração serão individualizados. Além disso, o proprietário poderá impedir os demais pecuaristas de utilizarem seu bem de forma irracional. 

A tragédia dos comuns explica bem a situação atual das áreas de floresta que ainda estão como terras devolutas, ou seja, as áreas públicas que pertencem ao Estado, mas que não têm uma destinação pública definida. Nestes casos, uma estratégia interessante seria justamente a regularização fundiária dos proprietários rurais e das comunidades locais.

Regularização fundiária é, basicamente, o conjunto de medidas que tem como objetivo legalizar a posse de terras ocupadas de forma irregular. Na Amazônia, a Lei nº 11.952/2009 permite a regularização de ocupações realizadas por pessoas físicas em terras públicas federais. Para isso, é necessário que a ocupação tenha ocorrido até 1º de dezembro de 2004, tenha uma área de, no máximo, 2.500 hectares e que os ocupantes respeitem a legislação ambiental, mantendo, por exemplo, áreas de preservação permanente e de reserva legal.

A lei, entretanto, precisa de um regulamento para detalhar sua aplicação, organizar a administração pública e definir procedimentos para a implementação de políticas públicas. Até o presente momento, é o Decreto nº 10.592, de 2020, que regulamenta a questão e que orienta o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na promoção da regularização fundiária na Amazônia.

Entretanto, em 2023, houve uma alteração que proibiu a regularização das áreas que se sobrepõem às florestas públicas na Amazônia. Em decorrência da nova regulamentação, foi expedido um ofício à Superintendência Regional do Incra determinando a interrupção de todos os processos de regularização fundiária.

Esse fato provocou inquietação e apreensão entre organizações da sociedade civil. Em resposta, o parlamento brasileiro ameaçou derrubar o ato normativo do Poder Executivo. E assim, diante da crise instalada, o Presidente da República recuou e retomou a política fundiária anterior e, assim, restabeleceu a regularização fundiária em áreas sobrepostas a florestas públicas.

Esse caso, entretanto, é exemplificativo da incipiência da política fundiária brasileira e da falta de articulação desta com a ambiental. Ainda, mostra a existência de uma disputa política entre duas visões ambientais no Brasil: uma que defende a Amazônia intocada e outra, mais exitosa, que busca conciliar a ocupação humana com a sustentabilidade ambiental.

O momento clama por maior consenso e efetividade da política pública. É hora de rompermos com ideais bucólicos de um ambiente que nunca existiu e de nos concentrarmos nas possibilidades mais reais e imediatas: ou atribuímos responsabilidades e direitos aos moradores locais e às comunidades ou a "terra de ninguém" continuará pegando fogo.

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