FREDERICO DE HOLANDA — Arquiteto, PhD em arquitetura, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e RAPHAEL SEBBA — Sociólogo, mestre em arquitetura e urbanismo pela UnB
Brasília é conhecida como "a cidade dos carros". Mas o visitante incauto tem bela surpresa quando vai ao Eixo Rodoviário — codinome Eixão do Lazer — aos domingos ou feriados, e encontra uma multidão no imenso espaço daquela via de 7 faixas de rolamento para veículos (ausentes, nesses dias), com 25 m de largura, atravessando a cidade de norte a sul. Ao espaço central do Eixão somam-se duas fitas gramadas de 47 m de largura, em ambos os lados das faixas centrais para carros, fazendo do lugar um parque linear de quase 125m de largura e 12,4km de comprimento.
O que antes era um espaço rodoviário para bólidos a 80km/hora transforma-se em novo sítio, onde nenéns são conduzidos em seus carrinhos, crianças passeiam de velocípedes, bicicletas e patinetes, adultos e idosos caminham, correm, brincam de acrobatas equilibrando-se em fios estendidos entre árvores, lancham em quiosques, reúnem-se em grupos para conversas a realizarem o balanço da semana e do país (e de suas vidas!...), estendem toalhas no gramado e fazem piqueniques, juntam-se ao redor de rodas de choro, de MPB, de rock... Se não quiserem fazer nada disso, simplesmente apreciam, extasiados, o bulício — é "bonita a festa, pá!"
O evento tem origem há mais de 30 anos, quando o Defer fechava parte do trecho sul da via para a realização de atividades esportivas aos domingos. Inspirando-se em eventos similares que conheceu no Rio de Janeiro, Silvio Cavalcante, então diretor do Departamento de Patrimônio Histórico e Artístico do DF (Depha/DF), e simultaneamente conselheiro do Conselho de Arquitetura e Meio Ambiente (Cauma), propôs, e foi aprovada, a extensão da prática para todo o Eixão, e para os feriados, além do domingo. Nunca, nessas mais de três décadas, ocorreu algo similar à verdadeira operação de guerra deflagrada no Eixão por funcionários do governo local no domingo passado (1º/9/2024).
Os presentes no Eixão — e quem não estava lá, pela replicação na mídia — foram surpreendidos por uma truculenta ação. A atmosfera de paz foi manchada por veículos militares no centro da via e por soldados, que, sem nenhum aviso prévio, abordaram os vendedores ambulantes em busca de supostas "permissões" para ali estarem — permissões nunca dantes exigidas, menos ainda planejadas pelo poder público. Sem esses documentos, os vendedores eram obrigados a desmontar seus quiosques, recolher suas mercadorias, muitas perecíveis — o que implicou grandes prejuízos para uma população de poucos recursos — e abandonar o local, sob o olhar pasmo dos seus clientes.
Se a operação foi revestida de requintes de espalhafato e de crueldade, ela, na verdade, repete uma tradição nesta cidade, na qual, nas iniciativas populares autoproduzidas, é colado o rótulo de ilegitimidade, quando não de ilegalidade. Se em outras cidades brasileiras ocorrem fenômenos similares, aqui no Distrito Federal chegamos ao paroxismo. Pois na capital, mais que em qualquer outro lugar, certo modo de fazer cidade, centralmente concebido e gerido desde sua origem, particularmente em suas partes mais "nobres" (mas não só), empurra para uma suposta "desordem" tudo aquilo produzido fora do padrão dominante. Às vezes, a mão de ferro (literalmente) do Estado pesa mais, como nas casas dos favelados da antiga Vila Paranoá, colocadas no chão por tratores na calada da noite em 1989; às vezes, pesa menos, como na remoção da Feirinha da Torre de TV, existente há quatro décadas, mas que não estava "conforme" com sua localização, e foi removida do sopé do monumento em 2009. A blitzkrieg do domingo passado é mais um exemplo de ódio à autogestão do território na capital.
Nem a produção erudita da cidade nem a autoprodução intuitiva popular são uma ordem perfeita — carece sempre aperfeiçoá-las, e isso vale para as superquadras brasilienses tanto quanto para os vendedores ambulantes do Eixão do Lazer. É inaceitável, contudo, a estratégia do "atire primeiro, pergunte depois". Havia barulho excessivo nos espetáculos musicais? Os quiosques estavam a atrapalhar a circulação? Lixo estava sendo acumulado? Tudo isso e mais, argumentado pelas "forças da ordem" e também por alguns membros do público em geral, pode ser resolvido mediante regras de comum acordo que a todos beneficiem — dos ambulantes aos que usufruem de seus serviços.
No entanto, o governo optou pelo caminho da barbárie, como, aliás, tem sido, infelizmente, a regra quando o assunto é a ocupação viva de ruas, a urbanidade e o direito à cidade. Oxalá as "forças da ordem" considerem o repúdio que as medidas provocaram em grande parte da população, e operem uma inflexão de percurso. Resta à população agir para mudar os rumos e romper com esta concepção urbana elitista e conservadora, que fez e faz tanto mal à nossa cidade.